Textos e fotos de Jorge Lima Alves

quarta-feira, 4 de março de 2009

Caderno japonês

Dia 23
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Mal saí do aeroporto em Osaka, para entrar no comboio que nos levaria a Tóquio, deliciei-me com as fardas das raparigas da limpeza. Muito jovens, vestidas com cores coloridas, pouco tinham que fazer para além de passear a sua fotogenia, pois à nossa volta, tudo parecia higienizado. Quanto muito havia um jornal abandonado um banco para recolher ou uma garrafa de plástico deixada numa mesinha. Tudo me pareceu imediatamente encantador, muito clean, muito bem iluminado, com cores vistosas que não feriam a vista. A paisagem, que vi através das janelas do comboio, pareceu-me incrivelmente nova, diferente de todas as outras que conhecia. Estava do outro lado do mundo e sentia-o em cada centímetro da minha pele.

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Kyoto revelou-se fascinante logo ao primeiro contacto. Para onde quer que olhasse, felicitava-me por ter vindo. Os templos, as flores de papel, os cheiros, a água a correr por todo o lado, as multidões de estudantes nas ruas, com as suas fardas bem engomadas. Tudo era mais espectacular do que esperava encontrar. Mais bonito e mais forte era impossível. Os meus olhos e o meu coração raramente se tinham sentido tão recompensados.

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Na rua, apesar dos chuviscos constantes, o encantamento era permanente. Alguns peões, homens e mulheres, novos e velhos, usavam máscaras de cirurgião, sem dúvida para se proteger da poluição. Ou seria porque estavam constipados e não nos queriam pegar a doença? Como ninguém falava inglês, era impossível esclarecer o que quer que fosse. No primeiro dia, o que mais me espantou, foi ser tudo minúsculo. As casas, os carros, as próprias pessoas. Menos os parques, que são imensos, abrigando invariavelmente templos e santuários belíssimos. Algumas senhoras usavam o tradicional quimono de seda. Nas costas têm sempre uma pequena almofada a que chamam «obi». Pergunto-me para que serve. A Raquel chamou-me a atenção para as pernas tortas das raparigas. A maior parte parece que cresceu a andar a cavalo: têm as pernas arqueadas, o que lhes dá um andar curioso. Mas as mulheres, qualquer que seja a sua idade, vestem-se com uma elegância que me deixa comovido.

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Quando lhes dirigiamos a palavra, os japoneses ficavam muito atrapalhados. Deveras desolados por não nos entenderem. Percebia-se que queria ser simpáticos, ajudar-nos, mas incapazes de o fazer por não nos entenderem, nem conseguirem fazer-se entender. Felizmente, em quase todo o lado, há indicações em inglês. * Os taxis são muito estilosos, com assentos cobertos de renda e condutores de luvas brancas. Os símbolos que os identificam como táxis, sobre os tejadilhos, são muito engraçados. Uns ostentam um trevo, outros uma estrela ou um coração.

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Uma das nossas primeiras visitas foi para o famoso templo das Águas, o Kiyomizu-dera, um dos mais visitados da cidade. Um dos locais privilegiados do Templo é uma varanda de madeira suspensa de onde se pode apreciar uma floresta magnífica e parte da cidade ao longe. A sua construção data de 778, quando um monge visionário encontrou uma fonte cuja água tinha virtudes curativas. Os japoneses, principalmente os adolescentes, fazem bicha para beber um pouco de água e rir uns dos outros. Enquanto passeamos por ali (os jardins são magníficos), de vez em quando, um grupo de estudantes fazia questão de ser fotografado na nossa companhia. Sempre que lhes apontávamos a máquina fotográfica, os japoneses sorriam e faziam um V com os dedos apontados para nós. Peace and love? Vitória? Vá-se lá saber. Em todo o caso, é um tique que todos partilham.

 Dia 24

Mal chegámos ao aeroporto de Osaka, fomos ao posto de turismo à procura de um hotel. Perguntaram-nos que tipo de hotel queríamos e quanto é que estávamos dispostos a pagar. Optámos por um Toyoko-Inn, que ficava no centro da cidade. Custava mais ou menos o que estávamos dispostos a pagar e ficava no centro. O quarto era exíguo, mal tinha espaço para a cama. Também a casa de banho é mínima, mas tinha tudo o que é preciso e mais ainda, com repuxos na sanita e outros gadgets que nem chegamos a perceber para que serviam. Neste “business hotel”, como são conhecidos, o atendimento foi super-profissional, a cargo de jovens raparigas impecavelmente fardadas e perfumadas. Na recepção havia prendas para dar aos hóspedes: gravatas, canetas, chaveiros e sei lá que mais. Escolhi uma «lanterna-robot» para ler no escuro. É um objecto curioso. Prateado, parece uma caneta, gorda e achatada. Quando se carrega num botão, desdobra-se e acende-se.

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Tal como prometiam os nossos guias (Guide du Routard e Lonely Planet), a estação de comboios de Kyoto impressiona. Foi reconstruída em 1994, por ocasião do aniversário da decisão de aqui instalar a capital do país em 794. Imponente, nas suas linhas futuristas, o edifício abriga um hotel de luxo e uma sala de espectáculos, para além de um centro comercial. Não deixámos, como é evidente, de subir ao último piso onde se encontra um terraço ajardinado que proporciona uma bela vista sobre a cidade. * Todos os templos e palácios que visitámos estavam cheios com estudantes, principalmente do sexo feminino com as suas fardas muito sexys que invariavelmente me faziam pensar no a fotografias do Araki. Mas ainda me encantavam mais os vestidos das monjas, com as suas blusas brancas e longas saias vermelhas. A estas vestais nipónicas chamam «miko». Antigamente, chamavam-lhes «as virgens do templo» e passavam por ser ou feiticeiras ou adivinhas, não percebi bem. Geralmente eram filhas dos sacerdotes e ajudavam-nos nalgumas tarefas. Hoje são principalmente voluntárias ou mesmo trabalhadoras contratadas a prazo. Infelizmente, não tivemos ocasião de assistir às suas danças cerimoniais, que imagino muito sensuais.

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A maioria dos japoneses consideram-se tanto xintoístas quanto budistas. Tanto quanto sei, o Xintoísmo é uma religião politeísta nativa do Japão, que passou por um processo sincrético com religiões e filosofias vindas do exterior como o Taoísmo, o Confucionismo e o Budismo. As pessoas vão aos templos para rezar, mas também para pedir favores aos deuses. A maioria escreve os seus desejos em papelinhos que depois dobram de forma a parecer flores e decoram árvores artificiais com eles. Ao longe parecem arbustos floridos. É lindo. Nesses templos, nos jardins e mesmo, por vezes à beira dos passeios, há pequenas estátuas de pedra com gorros na cabeça e uns aventais laranja muito curiosos. Penso que são deuses ou duendes. Quando estão ao pé de um lago, ou se uma simples poça de água, as pessoas deitam modinhas lá para dentro.

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De uma coisa fiquei com a certeza: o Japão é de longe o país mais civilizado do mundo. Nunca estive num local mais aprazível e sereno, onde as pessoas são um exemplo de civilidade e elegância. Quando nos dirigimos a uma pessoa para lhe pedir uma informação, chega a ser embaraçoso, pois não sabem comunicar connosco, mas querem ajudar-nos a todo o custo, ficam com um ar que mete pena e temos dificuldade em afastar-nos com receio de ferir a sua sensibilidade. Procuram genuinamente compreender-nos e sente-se que seriam capazes de tudo para nos agradar. * As casas, as ruas, os carros, estava tudo irrepreensível. Quando chovia, havia baldes e recipientes à porta das casas, para recolher a água da chuva, como se fazia no Congo. Não que falte aqui: trata-se apenas de (re)aproveitar um bem essencial. Os autoclismos, por exemplo, têm uma torneira para que lavemos as mãos na água que vai encher o depósito, para lhe dar dois usos em vez de um só. É simplesmente genial.

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Kyoto, que na altura se chamava Heian-kio, foi a capital do Japão entre 794 e 1868 (Kyoto quer dizer cidade-capital e é anagrama de Tokyo, se repararem bem). Quando a visitei, em 2006, tinha cerca de milhão e meio de habitantes e era, certamente, uma das cidades mais bonitas do mundo, rodeada de florestas e fontes de água. É também a cidade do Japão que tem mais templos e santuários. E pensar que os americanos ainda ponderaram deitar aqui uma bomba atómica!

 Dias 25 e 26

Embora Kyoto seja pelo menos tão grande como Lisboa, nunca tivemos que apanhar um transporte. Percorríamos a cidade a pé, conscientes de que é essa a melhor maneira de ver tudo como deve ser. No segundo dia da nossa estada, passeámos pela parte mais moderna da cidade (com grandes avenidas pejadas de lojas e restaurantes chiques), e na manhã seguinte fomos deambular ao longo dos canais, em bairros mais antigos onde há ainda muitas casas de madeira. As casas parecem saídas de um conto de fadas e, por todo o lado reina uma calma infinita.

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Nas nossas deambulações, passámos em frente de vários «love hotel». Já tinha lido sobre eles. Destinados aos namorados e aos amantes ocasionais, estão abertos 24 horas por dia e não têm propriamente recepção. Tudo se passa de modo anónimo e podem ser alugados à hora. Há diversos tipos de quartos, que remetem para os mais diversos imaginários e fantasias. Estivemos muito tentados em experimentar um, mas acabámos por não o fazer, para grande pena minha. Em contrapartida, passámos duas noites num «ryokan», uma espécie de pensão tradicional, que se revelou uma experiência inesquecível. O recepcionista não falava uma palavra de inglês, mas parecia perceber o que dizíamos. Por isso, lá nos indicou, por escrito, o preço, que era mais ou menos o mesmo que pagávamos no Toyoko-Inn, cerca de 50 euros por noite. Quando lhe perguntámos se podíamos ver o quarto, estendeu-nos uma folha impressa onde se dizia mais ou menos isto em inglês: «No Japão é falta de educação pedir para ver os quartos». Tive que me conter para não desatar a rir. Depois, quando acedemos em pagar o preço, estendeu-nos uma outra folha que explicava que tínhamos forçosamente que deixar o quarto até às 11 da manhã e que não poderíamos regressar antes das quatro da tarde. O quarto era, como seria de esperar, minimalista. Em vez de cama, tinha dois colchões enrolados a um canto. Havia também uma mesinha baixa, com uma chaleira, chávenas e todo o necessário para fazer chá. Na casa de banho, dois roupões e chinelos. Espartano, mas confortável e cheio de charme.

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Uma noite fomos espreitar o bairro Pontocho, situado numa ilha e que parece ser o centro de diversão nocturna. Numa livraria, cheia de livros em segunda mão, comprei The Dying Animal do Philip Roth, numa edição de bolso. Baratíssimo. * Na manhã do sexto dia, partimos para Tóquio. Ainda pensámos ir no comboio bala, mas era demasiado caro. Optámos por isso por um autocarro nocturno. O horário está feiro de modo a dormires toda a viagem mas a acordar uma hora antes de chegar à capital, para te dar tempo para te preparares e não perderes a emoção de chegar à capital do país. Como fomos os primeiros a reservar os bilhetes da camioneta, ficámos com o melhor lugar, lá em cima no primeiro andar, mesmo em frente à janela, com vista panorâmica.

Dia 27

Em Tóquio fomos para outro Toyoko Inn, infelizmente um tanto descentrado porque os outros estavam todos cheios. Mas como havia uma estação de metro quase à porta, não nos importámos muito. Não foi, no entanto, muito fácil dar com o hotel. Tínhamos a morada mas ninguém parecia conhecer a rua. A folha que imprimíramos da Internet dizia que ficava a 500 metros do metro. Já um pouco desesperados, abordámos um polícia que nos apontou uma direcção. Mas não víamos Toyoko Inn em lado nenhum. Por fim, um rapaz que percebeu o nosso desespero, abordou-nos num inglês quase perfeito. Tinha vivido nos Estados Unidos e estava agora de regresso a casa. Com a sua ajuda foi fácil encontrar o hotel. Era ali perto, mas numa rua secundária que ainda não tínhamos percorrido.

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Segundo a Wikipédia, a região metropolitana de Tóquio é uma das maiores concentrações urbanas do mundo, com cerca de 30 milhões de habitantes. Em japonês, Tóquio quer dizer «capital do Leste». O mapa do Metro é impressionante. Uma teia densa de linhas coloridas que cobrem toda a superfície da cidade. Se bem percebi, há duas linhas distintas, que se completam. Cada linha tem uma cor, cada estação um número. Os mapas são muito claros e é facílimo uma pessoa orientar-se. Não tivemos a menor dificuldade nesse aspecto.

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O nosso primeiro passeio foi até ao principal templo no centro da cidade, o Senso-ji, também conhecido como Asakusa Kannon. É um dos mais importantes ícones da capital japonesa, com suas lanternas enormes decoradas e o portão laqueado de vermelho na entrada sul. Fundado no século XVII em homenagem a Kannon, a deusa da Piedade, o templo (budista) tem seus portões guardados pelos deuses Raijin, deus do Trovão, e Fujin, deus do Vento. À volta do templo há dezenas, ou mesmo centenas de lojas para turistas, mas desde que chegámos ao Japão, quase não temos visto estrangeiros.

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À tarde fomos para Shinjuku. Aí, numa daquelas lojas enormes com equipamentos electrónicos comprei uma nova máquina fotográfica, uma Nikon D200. Não resisti, tanto mais que custa quase metade do que custa na Europa. Shinjuku é impressionante, com os seus arranha-céus cobertos por néons e onde o comércio não se limita ao rés-do-chão, antes se estende a todos os andares. Um só prédio abriga vários negócios: restaurantes, bares, lojas de roupa, tudo o que se possa imaginar. E, claro, há casas de pachinko por todo o lado. O pachinko é o jogo nacional. Está por todo o lado e sempre cheio de gente. O pachinko é uma máquina de jogo entre o flipper e a slot-machine, que se joga com berlindes metálicos. É preciso ver para crer. Cada jogador tem aos pés, caixas de plástico cheias de esferas de metal com que vai alimentando a máquina. Impossível perceber como se joga, mas é hipnótico. As máquinas são muito coloridas e piscam emitindo sons maviosos. Tanto quanto sei, tudo o que se ganha são mais esferas de metal que, no final, podes trocar por prendas, pois os prémios em dinheiro estão proibidos.

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Para o nosso primeiro jantar em Tóquio omos espreitar a «Piss alley», depois de termos passeado por Kabukicho, o «red light district» local, cujos cabarés têm à porta dezenas de fotografias de meninos e meninas, cada um mais bonito do que o outro. Beleza à la carte, para quem pode pagá-la! Como o nome indica a «piss alley», cujo verdadeiro nome é shomben yokocho, é uma ruela estreita e mal iluminada (mas não cheira mal). Não fica muito longe da impressionante estação de Shinjuku e abriga dezenas de pequenos bares e restaurantes (a maioria deles não leva mais do que uma dezena de clientes de cada vez) onde se come ao balcão, petiscos deliciosos (mas caros), quase invariavelmente acompanhados por saké. Deliciámo-nos.

 Dia 28

A Nikon D200 teve um baptismo de fogo em beleza. De manhã cedo, muito perto do hotel, apanhámos uma feira, com um mercado de rua cheio de barraquinhas de comida. Doces, salgados, frutas e legumes confecionamos na hora, era o que se quisesse. Instantes mais tarde, deparámos com um teatro de rua e, mais adiante, com uma procissão que envolveu alguns milhares de pessoas durante toda a manhã. No mercado, deparámos com um sujeito que fazia chupa-chupas com forma de animais – cães, cavalos, cisnes – de uma perfeição espantosa. Num minuto, ou pouco mais, realizava miniaturas que eram imediatamente devoradas por crianças gulosas. Difícil imaginar objectos artísticos mais comoventes e efémeros do que estes. Durante a procissão que referi, um dos participantes despiu, de repente, a sua veste tradicional e estendeu-ma, dando-me a entender que gostaria de me ver a substitui-lo durante algum tempo. Assim fiz, misturando-me na multidão que me acolheu com sorrisos de simpatia. Enquanto me fotografava, a Raquel ria a bandeiras despregadas, mas para mim não foi uma experiência muito agradável. O andor era pesadíssimo, eu estava comprimido entre dois carregadores suados e a cada passo a trave de madeira esmagava-me um pouco mais o ombro, tanto mais que o avanço se fazia de forma sincopada. Fiquei aliviado quando o sujeito, por fim, me veio render.

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À tarde, e como era domingo, fomos para Harajuku, pois eu queria muito fotografar as celebérrimas “lolitas góticas”. Mal saímos do metro, deparei logo com uma dessas lolitas. Parecia efectivamente uma boneca de porcelana do tempo da minha bisavó. Cá fora, ocupando toda a ponte que conduz ao parque, e também nas imediações, estavam algumas dezenas de jovens com visuais tão ou mais espectaculares. Umas mais punk, outras mais futuristas, mas todas fotogénicas. Algumas pareciam mulheres fatais, outras crianças como só se vêem na banda desenhada. Pelo meio havia rapazes que se faziam passar por raparigas e raparigas que queriam parecer rapazes. Nalguns casos era muito difícil perceber qual o sexo da pessoa que estava a fotografar. Não há maneira de descrever a fantasia daquela gente, nem os objectos de que se servem em profusão para se afirmar. No conjunto revelam uma imaginação delirante. Era como estar num palco enorme, rodeado de personagens pertencentes a vários filmes diferentes, cada um mais improvável do que o vizinho do lado. Tirei muitas centenas de fotografias ao longo desse dia, de tal modo que este 28 de Maio deve ser a data mais bem documentada de toda a minha vida.

dia 29

Acordámos cedíssimo para ir visitar o «Tsukiji fish market», o maior mercado de peixe e marisco do mundo. Impressionante e gigantesco, com efeito. Nunca tinha visto tantos peixes loucos, para já não falar de seres aquáticos ainda mais estranhos, que nem sabia que existiam. Fiquei muito impressionado por uns mexilhões maiores que a minha mão, por exemplo. Mas os nossos planos para ir comer o famoso sushi numa das tascas do mercado caiu por terra, pois havia bichas enormes à porta dos restaurantes e teríamos que ali ficar horas à espera de vez. Por isso, escolhemos no nosso guia um restaurante que garantia um dos melhores sushi da cidade e foi aí que nos regalámos. À tarde, embarcámos num barco que nos permitiu ter outra perspectiva da cidade e que nos deixou num parque lindíssimo onde nos perdemos de propósito porque não há, na minha opinião, melhor maneira de visitar um parque do que perdendo o fio à meada. O Museu da Fotografia que visitamos na manhã seguinte, não me desiludiu, com a sua arquitectura moderna e yuppies por todo o lado. Cá fora, amplos espaços onde as mães vêm passear os filhos e os burocratas vêm almoçar ao ar livre, os bento (marmita japonesa com uma variedade de sabores e texturas, tão bonitas como saborosas).

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À tarde, fomos visitar os cenários do Lost in Translation. Ou melhor, o hotel Park Hyatt Tokyo, em Shinjuku, onde estavam hospedados o Bill Murray e a Scarlet Johansson. Sem que ninguém nos incomodasse, pudemos passear por todo o lado, á excepção dos quartos, e subir ao 52º piso, que oferece vistas espectaculares da cidade. A caminho do hotel, contudo, ao longo do parque, vimos vários sem-abrigo, o que me deixou incrédulo. Numa sociedade destas, onde tudo parece tão civilizado e bem regulado, não se imagina que possa haver gente a dormir ao relento. É verdade que alguns tinham tendas de campismo, e que estavam confinados a um parque, mas mesmo assim.

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Há vários cemitérios em Tóquio e eu queria ver um. Fomos à procura de um dos principais e era um parque enorme, tentacular, com ramificações dentro de jardins particulares. Na verdade, havia campas por todo o lado, até nos pátios de alguns condomínios privados. Deu para perceber que aqui, vivos e mortos convivem em harmonia, zelando uns pelos outros, sem dramas nem medos.

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Nas páginas dedicadas aos restaurantes da área, havia um instalado num Chalet suiço. Fomos espreitar e nem queríamos acreditar nos nossos olhos. Tanto fora como dentro da vivenda, a ilusão é perfeita. Trata-se de uma réplica exacta de uma casinha helvética, onde a única coisa que destoa são as caras das pessoas (clientes e funcionários). De resto, parece que estamos nos Alpes.

1 de Junho

Para o último dia em Tóquio, voltámos a Harajuku, pois não tínhamos visto um dos templos mais conhecidos, e havia uma grande parte do bairro por onde ainda não tínhamos passado. Mais uma vez, vi várias fotos da Audrey Hepburn, em montras ou em cartazes. A actriz parece ser aqui uma figura de culto. Talvez ela represente, aos olhos dos japoneses, o ideal da beleza ocidental. De resto, foi um dia consagrado a compras de última hora: roupas, artesanato, guloseimas que dificilmente encontraríamos noutras partes do mundo.

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Situada na região de Kansai, Osaka é terceira maior cidade do Japão e como é aqui que ficava o aeroporto para o nosso voo de regresso, decidimos lá passar pelo menos uma noite e um dia inteiro. O castelo da cidade é um dos mais famosos do país e foi aí que nos dirigimos em primeiro lugar. Está no interior de um parque murado e o edifício central tem oito andares. A sua origem remonta ao século XVI e o último restauro data de 1995. O interior abriga um museu. Do último andar pode ver-se o centro da cidade. A vista é magnífica. Cá fora, muitas dezenas de estudantes, descalças, sentadas no chão, desenhavam o castelo em grandes folhas A 2. Lá dentro várias escolas primárias, pois o castelo abriga um importante museu que conta a história do país com a ajuda de vídeos e instalações animadas.

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De regresso ao centro, fomos descansar os nossos pãezinhos doridos de tanto andar para a esplanada de um café bem no centro da cidade. Na sala, estavam duas jovens a dormir a sono solto. Aqui parece ser uma coisa natural: há gente a dormir em todo o lado, nos jardins, nos transportes públicos, e até nos cafés, pelos vistos. A esmagadora parte das pessoas que andam de metro em Tóquio fazem uma destas três coisas: ou dormem, ou estão às voltas com o telemóvel (jogando ou navegando na Net) ou lêem, livros de bolso invariavelmente forrados a papel. Para proteger os livros ou para que não se perceba o que estão a ler? Nalguns casos, pelo menos, pelo que pude ver, trata-se de mangas eróticos bem sugestivos.

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Quando estávamos no café, tristes porque este seria o último dia que passaríamos no Japão, reparámos de repente que, na rua em frente, havia uma bicha para uma loja mínima, uma espécie de quiosque com um balcão que dá para a rua. Cada pessoa que deixava a fila, depois de atendida, era substituída por outra, de forma que a fila parecia ter sempre, mais ou menos, o mesmo tamanho. Isso despertou-nos a curiosidade e fomos espreitar. Estavam a vender o que nos pareceu ser um bolo dentro de uma caixa de papel. Toda a gente levava dois ou três e, naturalmente, quisemos provar também. Quando estávamos na bicha, uma empregada da loja veio oferecer-nos uma fatia. Era uma espécie de pão de ló delicioso, muito fofinho com um sabor muito subtil a cheesecake. Comprámos dois bolos e posso jurar que foi o melhor pão de ló que comemos na vida.

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Um provérbio japonês diz que o país é como um ser humano cuja cabeça seria Kyoto, o estômago Osaka e o coração Tóquio. Precisamente as três cidades que visitámos. Coincidência feliz.