1º dia (18 de Junho, quinta-feira)
Chegou o dia e já estou no avião. A minha alma parece mais pura que ontem, talvez por estar aberta à aventura. Com a Raquel passa-se provavelmente o mesmo: estamos ambos a fazer uma das coisas que mais gostamos na vida: viajar. Na verdade, estávamos à espera deste momento, desde que viemos do México.
Por mim, diria que cada viagem que faço dá início, por assim dizer, a uma nova etapa na minha vida.
Segundo Thoreau, um rei chinês tinha escrito na sua banheira: «Renovai-vos completamente em cada dia». Em verdade vos digo: é mais fácil fazê-lo quando estamos longe de casa.
Em «Walden», um livro de que tanto gosto, Thoreau lembra ainda, e muito bem, que «o trajecto está preparado para nós, quer viajemos depressa ou devagar». Se alguma coisa aprendi com todas as viagens que fiz é que, com efeito, não vale a pena querer ver tudo, ou ir a todo o lado. Andemos depressa ou devagar, cada viagem traz sempre, de qualquer modo, o seu quinhão de descobertas, desilusões, maravilhas, fotografias e recordações. O viajante não deve ter mais olhos do que barriga, pois por cada coisa que perdemos, ganhamos outra. Tudo está em tudo e o essencial está por toda a parte. A toda a hora.
De mãos vazias o digo.
No momento de embarcar para o avião, na Portela, ocorreu-me uma frase de Peter Handke que li recentemente («À Ma Fenêtre Le Matin»): «Mon être-lá est de plus en plus un être lá-bas: je suis emporté vers le lieu où je ne suis pas»).
Mais tarde
Por muito que goste de viajar e de aviões, estar sentado tantas horas num espaço tão exíguo é uma tortura. O meu rabo fala por mim. E as costas confirmam-no.
A meu lado, a Raquel tem frio. Em contrapartida, estou cheio de calor. Só tenho uma t-shirt vestida e estou a transpirar. Muito perto de nós, uma rapariga tem o blusão vestido e está toda encolhida, enquanto o seu namorado está de t-shirt como eu. A cada um a sua temperatura?
Antes do almoço, vi um documentário sobre a «Route 66» (um velho projecto nosso). A reportagem consistia essencialmente numa colecção de entrevistas realizadas ao longo da estrada, penso que por dois franceses. No minúsculo ecrã do avião, desfilaram donos de cafés, lojistas, almas solitárias. Gente de idade avançada na sua maior parte, com histórias dos bons velhos tempos para contar.
Pelo que percebi, a Route 66 já quase não existe. É mais uma lenda que se desfaz.
Há troços da estrada que já não são transitáveis e a sensação de decadência está por todo o lado. O filme deixa a ideia de que a América profunda é uma América esquecida. Envelhecida. Meio abandonada. Já a paisagem ainda é grandiosa. Sobreviverá sem dúvida aos homens que tanto mal lhe têm feito. Tudo indica, porém, que ela própria desaparecerá um dia. É o preço da eternidade.
Numa conversa com o Daniel, ontem à noite, enquanto comíamos uns caracóis numa esplanada de Campolide, a certa altura tive que lhe dizer: «Envelhecer é ir perdendo as certezas. Aos 20 anos sabemos tudo, aos 30 surgem as primeiras dúvidas e aos 60 já não temos a certeza de nada».
Mal tive tempo de acabar a conversa. Tivemos que ir a correr para casa, porque ia passar na televisão a reportagem da Ana Romeu sobre o «Testamento Vital».
Em Amesterdão, como combinado, a Joana veio ter connosco ao aeroporto. Trouxe o Samuel que vi assim, pela primeira vez, andar pelo seu pé. Ele não me reconheceu e tive alguma dificuldade em fazer-me aceitar. Está muito giro, mas muito irrequieto. O tempo passou a correr, outro avião esperava por nós.
Muitas horas depois
Em Vancouver, deparámos com um quarto horrível, num hotel a sul do centro, não muito longe da Ilha Granville. Feio e claustrofóbico, o tegúrio tinha um sofá-cama verde mal parido, com duas partes separadas por uma cova incómoda. Ainda por cima, uma das «metades» da cama era mais estreita do que a outra.
Apesar de exíguo, o quarto incluía num canto uma espécie de cozinha ridícula, também ela mal concebida, com armários até ao tecto e um frigorífico barulhento. Enfim, um verdadeiro pesadelo, até no preço. O mínimo que se pode dizer é que a relação qualidade-preço era péssima.
(A família Maio teve mais sorte. Teve direito a uma cama verdadeira.)
Antes de jantar, fomos dar um passeio pelas redondezas. Acabámos por comer numa espécie de rodízio de carnes grelhadas, numa atmosfera de saloon para cowboys, frequentada sobretudo por asiáticos. Há, de resto, asiáticos por todo o lado. No autocarro que apanhámos para o hotel, quase toda a gente tinha os olhos em bico.
Já tinha lido algures que hoje em dia a maioria dos emigrantes do Canadá vêm da Ásia. Não levei muito tempo a perceber de que assim é de facto.
Sexta, 19. Vancouver
Apesar dos chuviscos frequentes, passámos o dia a deambular «downtown», depois de uma passagem pela estação de comboios para comprar os bilhetes para Toronto, já que os nossos guias aconselhavam a fazê-lo com antecedência. Comprados alguns dias antes, os bilhetes ficam mais baratos.
Do que vi da cidade até agora, gostei especialmente de Yaletown e da Grandville na zona dos teatros (parte da rua está em obras, o que acentuava o seu carácter cinematográfico). Um dos cartazes que vi anunciava a vinda próxima de Neko Case, uma cantora americana de que gosto muito. Mais um concerto a que não vou poder assistir, com grande pena minha. Resta-me uma consolação: trago por acaso no ipod o seu último álbum (intitulado «Middle Cyclone»). Ainda não o ouvi, mas não perde pela demora.
Almoçámos num bistrot e jantámos sushi.
O filho do Luís Maio é doido por sushi, especialmente de salmão. Parece ser a sua comida preferida.
Sábado, 20. Vancouver
Antes de virmos, vi um programa na televisão onde se assegurava que Vancouver é, de todas as cidades do mundo, aquela que tem o melhor nível de vida. Passeando pelas ruas do centro, não custa nada acreditar em tal afirmação. Muito cosmopolita, a cidade propõe uma arquitectura globalmente simpática, onde coexistem harmoniosamente arranha-céus modernos e vivendas de madeira. Não se sente stress aqui.
Ao contrário do que sucede em Lisboa, os jornais locais não falam praticamente, nem da crise nem da gripe A.
Passámos a manhã em Granville Island, onde as docas deram lugar a ateliers de artes plásticas e escolas de todo o género. Ali se encontram vários mercados simpáticos (há um kid’s market, um public market e um marine market, por exemplo), restaurantes e cafés, várias galerias de arte, teatros e casas lacustres que muito invejámos. A ilha é um paraíso para as crianças, com vários parques e actividades que lhes estão destinadas. Vi um atelier de teatro cheio de crianças e, noutro local, mais crianças a pintar ou a desenhar em grupo. Aqui até dá vontade de ser pai.
Na Charles H. Scott Gallery, uma das muitas galerias por onde passámos, vimos uma interessante exposição de fotografias de arquitectura de Selwyn Pullan, intitulada «Positioning the New». Constituída por fotografias tiradas entre 1945 e 1975, a mostra foi pretexto para uma discussão (amigável) com o Luís Maio, pois ambos saímos com ideias muito diferentes acerca do trabalho do fotógrafo.
Ao almoço, partilhei sem querer um hambúrguer de salmão com uma gaivota traiçoeira. Surgiu-me pelas costas e arrancou-me um pedaço da sandes, felizmente sem me tocar. Primeiro fiquei furioso, depois desatei a rir, tanto mais que não é a primeira vez que tal me acontece. Uma vez, estava eu na Cidade do Cabo, à espera do teleférico para me levar à Table Mountain, veio um passarão enorme que me levou a sandes que me preparava para comer.
Da ilha partem ferrys e aquataxis que percorrem o false creek (falso rio) em todas as direcções. Por isso, decidimos ir de barco até à zona do Space Center onde estava a decorrer um «dragon boat festival». A certa altura, o nosso barquito ficou sem bateria e a rapariga que o conduzia (uma loura de compleição atlética) teve que remar e pedir ajuda pelo telemóvel. O Luís tirou-lhe uma foto quando ela estava a remar e a moça não gostou nada. Ralhou com ele, disse que era muito mal-educado por tirar fotos sem pedir autorização.
Mais tarde fomos à feira da ladra, onde comprei uma máquina fotográfica antiga (uma Brownie Kodak) para a minha colecção. O Luís ofereceu-me um livro de fotografias que eu hesitava em comprar, mais por causa do peso do que por causa do preço (10 dólares): «The Russian Heart: Days of Crisis & Hope», de David C. Turnley.
Ao fim do dia, passeio pelo West End e pelas praias, antes de jantarmos, numa brasserie, mexilhão e batatas fritas.
Domingo, 21. Ilha de Vancouver
Tivemos que acordar bem cedo, para apanhar a camioneta para a Ilha de Vancouver. A viagem de barco é fantástica. A paisagem é maravilhosa, com o mar salpicado de ilhas cobertas por florestas e a luz estava fabulosa, dando ao mar e ao céu cores deslumbrantes. Quem tem máquina não consegue parar de tirar fotografias.
Em Victoria, fomos para o Elm’s Inn, um hotel que vinha muito aconselhado nos nossos guias. O quarto era efectivamente fantástico, muito espaçoso, com uma cama king-size e uma boa casa de banho.
Pouco depois, alugámos um carro na Budget e fomos passear pela costa. A ilha de Vancouver tem sensivelmente o tamanho da Holanda, por isso estava fora de questão irmos a todo o lado em tão pouco tempo. Limitámo-nos, por isso, a visitar duas praias, a French beach e a Botanical beach.
Encontram-se na Ilha de Vancouver muitas árvores com 400 ou mesmo 500 anos. Algumas já existiam quando a Europa estava a sair da Idade Média. É impressionante pensar nisso, enquanto se percorrem os trilhos abertos à beira-mar.
Antes de adormecer, ainda li no «Epoch Times» (um jornal que panhara durante o dia) um inquietante artigo sobre os perigos da nanotecnologia e outro, igualmente muito interessante, sobre os problemas actuais dos aborígenes canadianos, cuja população não pára de crescer. Segundo o jornal, os índios actuais continuam com problemas de adaptação, virando-se frequentemente para o álcool e a delinquência.
Segunda, 22. Victoria
De manhã, passeio de carro até um parque que mal vimos porque o Luís e a Ana quiseram vir-se embora. Queriam visitar os jardins, mas não demos com o sítio. Meio zangados uns com os outros, em Victoria, separámo-nos.
A Raquel e eu deambulámos pelas ruas, sempre tirando fotografias e almoçámos num restaurante simpático chamado Il Paglici, onde os pratos tinham nomes engraçados: «Spaghetti western», por exemplo, ou «Marinade in Manhattan». Havia ainda um «Dish with no name», um «Hemingway short story» e uma «Jane’s addiction».
À tarde, fomos visitar o museu local porque a Raquel tinha curiosidade em ver os quadros de Emily Carr, a pintora mais famosa do Canadá que nasceu em Victoria (1871). Muita da sua pintura pareceu-me influenciada pelos impressionistas franceses, mas estavam patentes outras fases da sua obra mais interessantes. Não fiquei, contudo, especialmente impressionado pelos seus quadros.
No museu estavam outras exposições. Nomeadamente uma de arte japonesa («Edo: arts of Japan’s last Shogun age») e outra intitulada «The Great Landscape» com obras de vários artistas da Columbia Britânica. A exposição que preferi intitulava-se «O Mundo de Pernas Para o Ar» («World Upside Down»), e era composta por obras que não conhecia mas também exemplos retirados do cinema, da banda desenhada, e da literatura.
Na loja do museu comprei uma «reciclagem»; um velho garfo que alguém transformou num improvável insecto de prata. Adorável.
De regresso ao centro, numa loja, onde a Raquel entrou para ver sapatos, ouvi uma cliente queixar-se à empregada: «O sapato aleija-me um pouco o pé. Que pena, gosto tanto deles. Deus não quer que eu compre um par de sapatos hoje». Ao que a vendedora respondeu, para meu grande espanto: «Deixe estar minha senhora, vai ver que amanhã encontra os sapatos perfeitos para si.»
A simpatia dos canadianos continua a surpreender-me!
Terça, 23. Vancouver
Inaugurado em 1889, o Stanley Park é o pulmão da cidade de Vancouver e uma das suas principais atracções. Com os seus 400 hectares, é (como eles dizem) «uma das maiores ilhas de verdura urbana da América do Norte. Situado numa quase-ilha, o parque tem 400 hectares e alberga cortes de ténis, campos de golfe, piscinas, campos de jogos, um comboio em miniatura, um anfiteatro e um aquário.
Para o percorrer, alugámos bicicletas. Começámos por dar a volta toda ao parque (num total de quase nove quilómetros) e acabamos por ir visitar o aquário, que adorámos. Ficámos com uma óptima ideia da biodiversidade do mar nesta zona do globo e deixámo-nos encantar especialmente pelas anémonas. Na parte exterior do Aquário há leões-marinhos, focas, golfinhos e pequenas baleias brancas. Lá dentro estão, para além dos peixes e outros seres marinhos, papagaios, macacos, serpentes, crocodilos e sei lá que mais. No final, felicitei-me por ter visitado o local, que achei no entanto um tanto assustador. O fundo do mar e os seus seres sempre me meteram medo. Lembro-me mesmo da primeira ver que fui ao Aquário Vasco da Gama: nessa noite quase não consegui dormir.
Algures no parque, pode ler-se numa placa: «para o uso e prazer das pessoas de todas as cores, credos e costumes». É o que mais gosto em Vancouver: esta ideia de que a cidade pertence a todos. Infelizmente, não é essa a sensação que tenho em Lisboa.
Quarta, 24. Comboio. Jasper.
Noite no comboio. Como as couchettes são demasiado caras, não tivemos outro remédio senão procurar dormir sentados, como no avião. Passei a noite às voltas, sem conseguir dormir. Tinha dores nas coxas e nas costas e não conseguia deixar de ouvir a buzina do comboio, que não se calava.
Quando acordei, ou melhor, quando decidi que já não valia a pena procurar o sono, olhei pela janela e percebi que estava no Faroeste. Vi vaquinhas à solta na estrada, cavalos na pradaria e gente a viver em caravanas ou em cabanas de madeira, com carrinhas de caixa aberta à porta, tal e qual como nos filmes.
Mais tarde, entrámos nas montanhas e a paisagem mudou. Fiquei com a cabeça cheia do verde da floresta e dos rios. Na carruagem panorâmica, enquanto deixava que toda a minha mente se impregnasse do que via, ouvia o novo disco de Neko Case e aquela música fazia todo o sentido naquele cenário deslumbrante.
São quatro noites de Vancouver a Toronto de comboio. As couchettes são a um preço proibitivo (pelo menos para mim), pelo que tivemos que dormir sentados. Não é muito confortável, nem há a possibilidade de tomar duche (em económica), mas a paisagem que vai desfilando pelas janelas vale todos os sacrifícios. Há, de resto, carruagens panorâmicas, com o tecto envidraçado, para se ver melhor. As refeições a bordo também são bastante boas e relativamente baratas (12 dólares). Na zona do bar, há filmes e concertos, de vez em quando.
Para os ricos, há um outro comboio que liga Vancouver a Jasper, atravessando as Rochosas. Chama-se precisamente Rocky Mountanaieer e só circula entre Maio e Outubro. Como este comboio especial só viaja de dia, para não se perder nada do espectáculo oferecido pelas montanhas (picos de neve, cascatas, canyons, glaciares, florestas a perder de vista, ursos á solta, etc), a viagem inclui uma noite de hotel em Kamloops.
Em Jasper, acabámos no Jasper Inn, um hotel com piscina e jacuzzi, que mal aproveitámos.
Quinta, 25. Rocky Mountains
O Parque nacional de Jasper é, segundo os guias turísticos, «um dos locais mais notáveis do Canadá». Os guias prometem «vales a perder de vista, cadeias de montanhas acidentadas e lagos puros e cintilantes», para além de glaciares, como o Columbia Icefield.
À saída de Jasper, depois de pagar uma portagem (para andar dentro do parque tem que se pagar um bilhete diário), a primeira etapa foram as Athabasca Falls, umas cascatas impressionantes, rodeadas de montanhas deslumbrantes, com florestas a perder de vista. Mais adiante, novas cascatas ( Sunwapta falls) e mais um bom punhado de fotografias.
A própria estrada é um espectáculo, acho que nunca percorri nenhuma com tanta emoção. Se bem que a primeira vez que atravessei o Atlas em Marrocos, o meu coração deu muitos pulos! Enquanto avançávamos em direcção a Banff, pensava: «Na cidade, fazemos parte do espectáculo. Na montanha, não. O espectáculo está todo fora de nós. Aqui, verdadeiramente, as árvores escondem a floresta».
Aos meus olhos, cada árvore é uma pessoa. São todas tão diferentes umas das outras. Algumas fascinam-me mais do que outras.
Penso em tudo o que a floresta nos esconde e digo para mim próprio: «Não vemos quase nada». Depois, penso: «Ver é sentir e sentir é uma maneira profunda de pensar». Gostaria de pensar como uma montanha.
Mais adiante, depois de um piquenique na estrada, chegámos ao Columbia Icefield, que visitámos naqueles autocarros enormes, iguais aos que circulam na Antártica.
Durante a visita, fiquei a saber que o território que hoje ocupa o Canadá conheceu quatro épocas glaciares. Os glaciares de Athabasca e Columbia faziam outrora parte de um tapete glaciar que corroeu e esculpiu o relevo que hoje vemos nas Rochosas. A certa altura, o glaciar Athabasca cobria um vastíssimo território que ia do Norte até às planícies, para lá mesmo de Calgary. A mais recente época glaciar terminou há apenas 10 mil anos. A maior parte dos glaciares da América do norte está ainda a recuar, pois cada Verão derrete mais neve do que a que cai.
Quando a neve que cai atinge uma profundidade de cerca de 30 metros, as camadas inferiores comprimem-se e transformam-se em gelo. À medida que a neve se vai acumulando, a espessura do gelo aumenta e espalha-se.
Os visitantes não vêem senão uma pequena parte do Glaciar, que continua a mover-se imperceptivelmente, pois o gelo das camadas mais fundas, sob a pressão enorme, torna-se «elástica». As camadas superiores são mais quebradiças e formam, por isso, fendas.
Ao deslocar-se, o glaciar arrasta tudo o que encontra pelo caminho, rachando as próprias rochas e formando as «moraines».
O Columbia Icefield, que ocupa 325 metros quadrados, para além de fornecer água em quantidade, refresca a temperatura, tornando os invernos ainda mais rigorosos.
Chegámos a Lake Louise ao final do dia. A Ana Loureiro não quis ficar num Hostel (nossa escolha), porque não tinha quarto de banho privativo, e tivemos que ir para um hotel caro. O problema nas Rochosas, tal como avisava o Guide du Routard, é que em termos de hotéis só se arranja ou chunga ou chique, não há cá meios termos.
Mal acendemos a televisão do quarto do hotel, tivemos a notícia de que morreu o Michael Jackson. Levou-o uma paragem cardíaca aos 50 anos.
Ao jantar, nova discussão com o Luis maio e a Ana. Decidi, por isso, que seria melhor separarmo-nos em dois grupos.
Sexta, 26. Jasper
De regresso a Jasper, usámos a carrinha Nissan para ir ao Lake Maligne. De caminho, visitámos o Maligne Canyon e o Medecine Lake, o lago que desaparece. Na estrada, em vários locais, podemos fotografar de perto vários caribus que passeavam na floresta.
O Maligne Lake é o maior lago das Rochosas canadianas e um dos mais fotografados. Tem mais de 27 quilómetros de extensão e foi um jesuíta belga que o baptizou com esse nome, em 1846. 60 anos mais tarde, a exploradora Mary Schaffer (a primeira mulher a visitar o local) considerou-o uma das paisagens mais espectaculares das Rochosas. Não sei se não é mesmo.
Os índios chamavam a Marie Schaffer «Yahe-Weha», que quer dizer «mulher das montanhas». Filha de uma família rica da Pensilvânia, ela casou com um botanista aos 19 anos. Ficou viúva os 30 anos, mas continuou a explorar as Rochosas, com a ajuda de um guia chamado Billy Warren, com quem ela viria a casar mais tarde.
Todos os anos, 7500 quilómetros cubos de água caem sobre esta região, sob a forma de chuva ou de neve. A sua força de erosão é tremenda e o vale do rio Maligne tornou-se profundo e estrito, ganhando a forma de um V.
Não longe do lago podem observar-se os canyons que assim se formaram.
Perto dali está o lago Medicine, que tem a particularidade de desaparecer durante alguns meses. Esse fenómeno assustava os índios e intriga ainda hoje os cientistas. Calcula-se que, quando o lago desaparece, a água do rio continue a sua marcha para o Ártico através de subterrâneos e cavernas cavadas no calcário, pois o rio reaparece perto do Canyon Maligne, a 16 quilómetros dali. Curiosamente, a água leva cerca de 16 horas a percorrer esses 16 quilómetros.
Já em 1956, um professor francês reconheceu a existência de um rio subterrâneo, mas até hoje ninguém conseguiu localizá-lo exactamente.
Quanto às montanhas que rodeiam o lago, continuam também elas a evoluir. A erosão está a esculpi-las lentamente. Nem as montanhas escapam ao envelhecimento.
A rocha mais antiga que se encontrou no local contém fósseis de conchas com mais de 600 milhões de anos!
Em Jasper resolvemos ficar numa casa particular. A proprietária, com um bebé ao colo fez-nos visitar o quarto e a casa de banho. Depois, de muita conversa, muito simpática, decidiu fazer-nos um desconto, sem que lhe pedíssemos nada.
Às 17h fomos entregar a carrinha. Confusão com os preços, com os quilómetros, com tudo. A senhora era um pouco totó, mas acreditou em tudo o que dissemos.
As pessoas em Jasper são relaxadas, confiantes. Gostam de conversar. Sorriem muito e são muito bem-educadas.
Na lavandaria, uma senhora meteu conversa connosco. Percebeu que precisávamos de ajuda e ensinou-nos a trabalhar com a máquina. Vive em Jasper há 15 anos. Tem dois filhos. Gosta da cidade e não se importa com o frio. Diz que chega a fazer menos 40. Contou-nos que um dia faltou a luz em toda a cidade e os bombeiros andaram de porta em porta a perguntar se estava tudo bem.
Enquanto a máquina lavava a nossa roupa, consultámos a Internet. Pela primeira vez desde que estamos no Canadá. Poucas notícias, mas de monta: um editor quer publicar «Palavra de Músico», o meu livro de entrevistas. Só em 2010, porém.
Nas Rochosas, o tempo está sempre a mudar. Tão depressa está fresco como está calor. Pode chover a potes e daí a nada estar um calor de rachar. Há até um ditado que diz: «Se não gostas do tempo que está, espera cinco minutos.»
Sábado, 27. Jasper
First thing in the morning, just after beakfast, comprámos bilhetes de camioneta para Edmonton e alugámos um Toyota Yaris na Hertz para ir a Pyramid Lake e depois até Miett Hot Springs, onde telefonámos para casa (mami, Daniel, Gina e pais da Raquel). Estavam no local várias famílias menonitas, que tive vergonha de fotografar. Mesmo assim ainda tirei á socapa duas fotos. É irresistível ver as raparigas vestidas como as mães, com os mesmos vestidos, feitos nos mesmos tecidos.
Cada família tinha a sua caravana, mas havia umas mais imponentes do que outras.
À beira dos lagos ou dos carreiros que levam à montanha, há bancos públicos, para uma pessoa descansar ou sentar-se a apreciar a paisagem. Todos têm pequenas placas incrustadas, invocando alguém. Este em que estou sentado neste momento, por exemplo, diz: «À memória de X. que tantas vezes se sentou aqui». Inscrições semelhantes estavam também nos bancos dos parques em Vancouver. Na verdade estão por todo o lado aqui no Canadá. Que bela maneira de evocar os mortos!
No caminho para os diversos sítios pudemos ver vários animais selvagens, em particular caribus e cabras da montanha. Quando vais na estrada e vês carros parados sabes logo que estão animais por perto. Apesar dos cartazes e avisos para não sair do carro, poucos conseguem resistir a aproximar-se dos animais para tirar fotografias.
À tarde, fomos até Mount Edith Cavell, talvez o local mais espectacular onde já estivemos nas Rochosas. Adorei o local, com o seu lago gelado, as rochas todas partidas e o vale magnífico a perder de vista.
De repente, ouvi um troar e pude ver um grande pedaço de gelo vir por ali abaixo, desfazendo-se pelo caminho.
Na hora e meia que ali passámos, pudemos assim ouvir três avalanches.
O alto do Monte fascina. Os índios chamavam-lhe «fantasma branco». Foi em 1916 que o monte ganhou o seu nome actual, em memória de uma enfermeira inglesa executada pelos alemães durante a primeira guerra mundial.
As rochas todas cá em baixo, na base do Monte são os vestígios de uma glaciação recente. Tudo começou, parece, há 400 anos, quando um ligeiro resfriamento da terra fez com que os glaciares crescessem. Mais tarde, quando recuaram, deixaram estes montes de pedra, que aqui chamam «moraines».
Agora, pouco a pouco, a vida está a voltar ao vale devastado pelo glaciar. Árvores crescem um pouco por todo o lado.
No trilho que conduz ao glaciar, um esquilo, de repente, atravessa-se à nossa frente. É lindo e fofo e livre. O seu território é magnífico e imagino-me na sua pele enquanto o observo.
Será que tem predadores?
Uma hora mais tarde, são uns pássaros que chamam a minha atenção. Acho que são quebra-nozes, mas não tenho a certeza. Também eles são bonitos, mas não parecem muito simpáticos uns com os outros. Uma mulher atira-lhes pedaços de bolacha e assustam-se uns aos outros para apanhar os melhores bocados. Tal como os homens, têm que fazer prova de esperteza e mostrar-se mais fortes para conseguir alguma coisa.
Que vida!
Vêm-me à memória os menonitas que vi em Miette Hot Springs. Que gente tão estranha e fascinante. Eram várias famílias e todas tinham o mesmo ar rude e infeliz (impressão minha?).
Eles rosados, robustos, com aquele ar típico de lavradores, de gente que vive da terra e da leitura da Bíblia. Elas com uma touca ou um lenço na cabeça, envergando vestidos simples em tecido barato. Pormenor engraçado: as filhas usam exactamente as mesmas roupas das mães, enquanto os rapazes são reproduções em miniatura dos pais.
Não posso deixar de reparar que a cada família corresponde um jipe ou uma carrinha com uma caravana atrelada. E que há caravanas e carros bem melhores do que outros. Por mais religiosos ou comunistas que sejam os homens, haverá sempre uns mais iguais do que outros. Os menonitas não parecem ser excepção.
Morrerei sem ter compreendido a estupidez humana. Não me parece que haja verdadeira inteligência no mundo e o significado da palavra consciência tem que ser muito relativizada.
Como seria o mundo se a proporção fosse completamente invertida e que as pessoas fossem, na sua maioria, sábias ou santas? Como seria um universo onde o bem e a solidariedade fossem a regra?
Será que num universo paralelo, Deus conduz experiências diferentes? Se existe, é bem provável que tenha criado uma infinidade de universos paralelos com realidades completamente diversas e que se entretenha a fazer comparações.
Estou a delirar! É sem dúvida por influência destas montanhas esmagadoras, destas florestas impressionantes que me rodeiam. A sua grandeza, a sua beleza estimula a minha imaginação. Na verdade, exaltam-me.
De repente, gostaria de ser uma árvore no meio das outras. Ter esquilos a trepar por mim acima, sentir os pássaros a esvoaçar dentro de mim, balançar ao sabor do vento e meditar sem fim. Mas até para ser árvore é preciso ter sorte. Não gostaria de ser uma árvore numa rua de Lisboa, por exemplo. A ser árvore, que fosse aqui nas Rochosas, neste vale aos pés do Monte Edith Cavell, onde o ar é puro e os visitantes se mostram civilizados.
De regresso a Jasper, fomos às compras. Como tínhamos passado frio nos glaciares, comprámos polares. A Raquel comprou também umas sandálias, para substituir as que tinha trazido e entretanto se tinham estragado.
Na loja onde comprei o meu polar, estive á conversa um bom bocado com o vendedor. Percebi que era francês e quis saber como tinha ido ali parar. Quis ainda saber quanto ganhava e como era a sua vida. Ele está em Jasper há 4 anos. Veio até aqui por causa do ski e decidiu aqui ficar. Percebo-o perfeitamente.
Domingo, 28. Jasper. Edmonton
Passámos a manhã no Jasper Museum Historical Gallery. Ficámos assim com uma ideia do que foi a construção dos caminhos de ferro. O museu evoca o nascimento da cidade, o aparecimento dos primeiros turistas e a criação do parque Natural. Eis os nomes de algumas das exposições patentes: «Jasper's First Tourist James Carnegie», «Earl of Southesk; a Celebration of the Park Warden Centennial 1909- 2009» e «Cowpoke Episodes: Glimpses into the Life and Times of a Canadian Cowboy, Stan (Windy) Carr».
Uma das histórias que o Museu conta é a dos irmãos Brewster (Jim e Bill), que criaram a primeira agência de turismo na zona. Guias profissionais levavam os visitantes ricos a contemplar os magníficos panoramas das Rochosas, no final do século XIX.
Depois do almoço, apanhámos camioneta para Edmonton. Numa das paragens, em Edson, roubei uma fotografia a um cowboy.
Em Edmonton, fomos para o International Youth Hostel, em Old Strathcona, uma espécie de bairro alto com ruas residenciais, tranquilas. O quarto era básico, mas correcto e a casa de banho, fora do quarto, era mesmo estupenda.
Enquanto passeávamos na Whyte Avenue, percebemos vimos um jovem negro ser preso pela polícia. O ambiente em alguns locais é de barra pesada. Há um forte cheiro a erva no ar, e vêem-se vários vagabundos.
Antes de ir para a cama, jantámos muito bem, num restaurante cajun, muito anos 50, com jukeboxes em cada mesa.
Segunda, 29. Edmonton
Em 1795, a Hudson Bay Company estabaleceu um posto de trocas no local onde actualmente se encontra a cidade. O Forte Edmonton rapidamente se tornou no principal aglomerado da região, tendo posteriormente evoluído para se tornar numa cidade. Hoje é a capital política e universitária da província de Alberta. No centro há uma linha de metropolitano (Light Rail Transit). Para percorrer o resto da cidade, só de autocarro.
Não podíamos deixar de visitar o West End Mall, o maior centro comercial do mundo. A sua superfície equivale a 115 campos de futebol. Para além de 800 lojas, o centro abriga uma praia com palmeiras e ondas, frequentadas por dezenas de pessoas que alugam também umas grandes bóias amarelas de belo efeito. Outras atracções incluem uma pista de gelo, um lago com um barco de piratas e submarinos. Apesar de ser dia de semana, o centro estava cheio de gente.
Na Whyte Avenue passou por nós um casal de vampiros. Vestidos de preto, usavam correntes de metal e eram ambos muito pálidos. Tinham os olhos maquilhados e a mala dela tinha a forma de um caixão. Um pouco mais à frente, vi passar o Davy Crocket. Vestido a rigor, com o chapéu de castor e o fato de pele. Tinha a barba esbranquiçada e aparentava ter uns 50 anos.
Durante o dia, tinha visto outras personagens engraçadas. Estou a lembrar-me, nomeadamente, de duas sudanesas muito elegantes e um adolescente japonês completamente andrógino (impossível decidir se era rapaz ou rapariga).
Edmonton é, ao que parece, a terra dos festivais. Segundo um jornal local, um de cada dois dias do ano um é passado segundo o signo de um qualquer festival. Há festivais de cinema, de música, de teatro, de literatura, etc.
Terça, 30. Comboio, Winnipeg
Estamos de regresso ao comboio, para a última etapa que nos vai levar a Toronto. Uma vez mais, conseguimos apanhar lugares duplos, que nos permitem formar, com o banco da frente, uma espécie de cama. Mas uma cama com altos e baixos e um buraco muito incómodo mesmo a meio.
Em tais condições, a noite foi horrível. Não encontrava posição para dormir e o comboio apitava constantemente, sem dúvida para assustar os animais selvagens que podem estar na linha. Adormecia, acordava, voltava a adormecer para acordar de novo. Sonhos soltos, breves, inquietantes.
De manhã, o Luís descobriu que dormíamos a poucos metros deles e ficou espantadíssimo. Fomos tomar um café e foi como se nada se tivesse passado.
O comboio avança lentamente, com muitas paragens. Antes de chegarmos a Winnipeg (palavra que significa águas turvas), houve uma «jam-session» no wagon-restaurante com uma banda folk. Um trio de guitarra, cavaquinho e banjo com um repertório composto por canções simples, tocadas com genuíno prazer. No final, um velho negro (com longas rastas brancas) sacou de uma harpa de beiços e entoou um blues à maneira. Um momento mágico!
A certa altura, um senhor de idade (a quem faltavam dois dedos na mão direita) meteu conversa com a Raquel para se queixar da violência que assola agora as cidades canadianas. Xenófobo, advoga a pena de morte. Diz preocupar-se pelo futuro do seu país «invadido pelos asiáticos». Em Edmonton, afirma ele, «há agora uma média de um homicídio por semana».
Jorge Luis Borges dizia que a América era a Europa no exílio. Quando o afirmou ainda não se falava de globalização. Hoje somos quase todos exilados, «estranhos» na nossa própria terra.
Lá fora, a paisagem é agora monótona. É uma planície sem fim, onde de vez em quando se vêem pequenas aglomerações, muito pobres. «Como fazem as pessoas para viver aqui?», pergunta-me a Raquel.
No céu, as nuvens emprestam à paisagem um ar «dramático».
Em Winnipeg, aproveitámos a paragem de três horas para (depois de comer qualquer coisa à pressa) dar uma volta pelo centro. Dada a hora (cerca das oito da noite), as ruas estavam quase desertas, mas vimos muitos e belos edifícios. Dá para perceber porque é que a cidade era considerada, no princípio do século XX, a Chicago canadiana.
O espaço aqui não vale nada. Há espaço com fartura, não é preciso economizá-lo.
Nas ruas, um forte cheiro a erva. Passámos por várias pessoas visivelmente pedradas.
Na estação, estava um cowboy a preceito. Vinha buscar a família e estava vestido como se tivesse o cavalo à porta.
Quarta, 1. Comboio
Quanto mais cansado, menos consigo dormir. Acordo cheio de dores. Nas ancas, nas pernas, nos ombros.
Hoje é dia do Canadá. Por isso, à tarde, ofereceram-nos uma fatia de um bolo que reproduzia a bandeira do país.
Quinta, 2, Toronto
A casa dos pais da Raquel fica longe do Centro, depois de High Park. Para lá chegar, sai-se no metro Runnymede e apanha-se o autocarro 79. Nos transportes públicos usam-se aqui umas moedinhas chamadas «tokens» e tem que se pedir «transfers» para passar do metro para o autocarro, ou vice-versa.
O mapa do metro é muito simples. Na prática só há quatro linhas. E quatro direcções: Norte, Sul, este, oeste.
Nos subúrbios, vi muitos velhos, quase todos emigrantes. No centro, vi sobretudo arranha-céus.
Nas casas de banho, encontrei secadores potentíssimos. Em 12 segundos as mãos ficam secas. Também os autoclismos são potentes.
Sexta, 3. Toronto
15º dia de viagem. Nunca me senti tão alheado do tempo. Tão alheado da passagem dos dias. Anoto: «Numa viagem só conta o futuro. O passado transforma-se em fotografias. Tudo o que vivi está agora em cartões de memória».
Os highlights do dia foram a visita à Art Gallery of Ontario (AGO) e ao Kesington Market.
O Museu de Artes Plásticas de Toronto foi fundado em 1900 e é um dos maiores da América do Norte. O edifício foi recentemente ampliado e redesenhado pelo arquitecto Frank Gehry (natural da cidade). O resultado é deveras curioso, tanto por fora (a fachada é toda envidraçada formando uma espécie de onda giigante) como por dentro, com as suas vigas e escadarias monumentais em madeira.
Enquanto espaço museológico só tem um defeito: à força de querer ter de tudo, só dá um cheirinho de cada coisa. Há arte africana, desenhos e fotografia, escultura e pintura e estão lá, evidentemente, os mais importantes artistas do Canadá, mas igualmente obras de Auguste Rodin, Claude Monet, Edgar Degas, Paul Cézanne, Vincent van Gogh, Pablo Picasso e René Magritte, entre outros.
O escultor Henry Moore está muito representado, tendo direito a uma sala própria, pois doou ao estado canadiano algumas centenas de obras.
Neste momento, o AGO tem patente uma grande (e bastante interessante) exposição dedicada ao surrealismo, intitulada «Surreal Things».
Sábado, 4. Toronto
De manhã, no Mocca (Museum of Contemporary Canadian Art), vimos uma exposição intitulada «Pulp Fiction», que reúne obras, dos anos 60 e 70, de artistas canadianos como Marc Bell, Tasha Brotherton, Mark DeLong, Barry Doupe, Shayne Ehman, Liz Garlicki, James Kirkpatrick, Amy Lockhart, Jason McLean, Jennie O'Keefe, Seth Scriver, The Lions e Peter Thompson.
Depois andámos a passear pela Queen Street, antes de ir visitar Richmond e muito particularmente o edifício com o nº 401. Uma antiga fábrica que abriga hoje 140 agentes culturais e empresas na área da cultura. É um espaço incrível, com muitas galerias e algumas lojas de design e/ou artesanato onde vimos coisas super-interessantes.
Às seis horas fomos ao encontro da Jane, uma antiga colega do liceu da Raquel. Já não se viam há 20 anos.
Ela e o marido, um português chamado Dave, levaram-nos a jantar no Mandarim, um buffet chinês. Depois fomos até casa deles, onde ele me mostrou uma banda desenhada em que anda a trabalhar. Na verdade, ele desenha muito bem, mas a história, que gira em torno de equipas de hóquei rivais, é de uma violência inacreditável.
O Dave trabalha para a BMW (não percebi se é mecânico ou vendedor), mas do que gosta mesmo é de desenhar. A Jane é grega. Ou melhor, filha de gregos. Quando falei ao Dave no filme «My Big Fat Greek Wedding», ele exclamou: «É a história da minha vida!»
Domingo, 5. Toronto
Começámos o dia por uma visita à Destilaria. Trata-se de uma antiga destilaria de uísque que abriga hoje um complexo de restaurantes, cafés, lojas de decoração, ateliês e galerias de arte. A área circundante tornou-se num bairro chique.
Numa das muitas galerias que ali há (Clark & Faria), vimos uma exposição do Douglas Copeland. Não sabia que também era artista plástico, mas a verdade é que tinha expostas algumas obras interessantes.
Aquele que o Toronto Star classifica como «this country's best-known cultural multi-tasker: novelist, playwright, actor, TV producer, screenwriter, furniture designer and – oh, right – artist» tinha ali expostas, entre outras coisas, um conjunto de obras inspiradas no retrato da Marilyn Monroe do Andy Wharol a que chamou «Matricídio». Sobre os desenhos da Marilyn ele cola, por exemplo, etiquetas de cerveja.
Havia também uma série de esculturas feitas com cubos com letras coloridas normalmente usadas para ensinar as crianças a compor palavras. Empilhados uns nos outros, os cubos coloridos formavam frases irreverentes como «Quit Your Job», «Fuck off» ou «Define Normal», por exemplo.
Entre humor e ternura, Coupland surge assim como um especialista do ready-made, capaz de sacar novos sentidos e direcções de obras alheias, ou até de objectos correntes. Há um lado cínico naquilo que faz, mas o que vemos também está impregnado de uma subtil nostalgia, parece-me.
Quando saímos dali, percebemos por acaso que estava a decorrer uma Feira da ladra no St. Lawrence Market. Ali comprámos uma placa de madeira muito engraçada onde se lê «Bred & Breakfast», com flores em volta. Um objecto tão piroso que se torna engraçado e que não sei muito bem onde vamos colocar. A Raquel comprou ainda uma mala de mão amarela muito gira, em segunda mão, por apenas 5 dólares.
O passeio continuou em Yorkville, onde ambos comprámos jeans em saldo na GAP e onde comemos uns gelados caseiros muito bons. O cone é feito na altura, à nossa frente.
E, depois de uma passagem pelo festival de jazz, fomos ver o Corso Italiano, uma festa de rua onde encontrámos muitos portugueses. De resto, há naquela rua uma «Portugueses Bookshop» e uma agência de viagens com um painel indicador na montra onde se pode ler: «Portugal 5149 km».
Segunda, 6. Niagara
As cataratas do Niagara são, como se sabe, umas das atracções turísticas mais populares da América do Norte (fala-se de cerca de 14 milhões de visitantes anuais). Para mim era impensável estar ali tão perto e não dar lá um salto, apesar do Oscar Wilde ter escrito que «o Niagara é a segunda grande decepção da recém-casada».
A mim não me decepcionaram. As cataratas são bonitas e imponentes.
O seu ressoar ouve-se à distância, de modo que, muito antes de as vermos, já as estamos a ouvir.
A primeira com que deparei foi logo a seguir à ponte que liga o Canadá e os Estados Unidos. Chamam-lhe «Véu de Casamento», fica do lado americano e tem 64 metros de altura por 340 de largura.
A segunda catarata (dita da Ferradura) é menos alta (50 metros), mas mais larga (800 metros), debitando uma média de 170 mil metros cúbicos de água por minuto.
Do lado americano (onde não fomos) as cataratas só podem ser vistas de lado. Por isso, mais vale vê-las em território canadiano.
As cataratas podem ser vistas de frente, de cima (helicóptero), de baixo, de lado e até por detrás. Contei pelo menos 15 agências que propõem diversos modos de gozar o espectáculo, porém, para mim, a melhor maneira de as sentir é embarcar num dos vários «Maid of the Mist» (Noivas da Névoa), barcos que lembram os antigos cacilheiros e que levam as pessoas até muito perto do local onde toda aquela água cai, com um ribombar colossal elevando no ar uma verdadeira coluna de névoa.
O mínimo que posso dizer é que nunca esquecerei os momentos em que estive envolto em bruma, som e fúria, aos pés da Deusa, sentindo no rosto as suas lágrimas torrenciais. Ouvi com o corpo todo o pranto feliz que lhe dá existência, e aquela molha (apesar do impermeável que nos fornecem, ficamos completamente encharcados) lavou partes da minha alma que nem eu sabia existirem. Foi como se tivesse sido baptizado de novo, desta vez pela própria natureza. Durante alguns momentos não havia barco, nem pessoas, só eu e aquele remoinho compulsivo dentro de mim, cobrindo-me de carícias molhadas. Foi um dos momentos mais eufóricos da minha vida.
Também a Raquel, a Ana e o Daniel pareciam em êxtase. Quanto ao Luís, quando lhe perguntei o que tinha achado, limitou-se a responder com ar blasé: «Foi engraçado!».
Terça, 7. Toronto
Tal como planeado, o dia foi dedicado a compras de última hora. Por mim, comprei um filtro para a minha lente 18-200mm e um livro do Douglas Coupeland: «Souvenir of Canada».
O dia esteve quase sempre cinzento e doíam-me as costas e a perna direita.
A certa altura, num Centro Comercial, assisti a uma cena curiosa. Um grupo de adolescentes encontrou-se ali, a poucos metros do local onde eu esperava a Raquel e pude ver que todos eles se abraçaram. Rapazes e raparigas. Nada de beijinhos. De repente, percebi que nunca vi ninguém beijar-se na face e lembrei-me que a Jane, a amiga da Raquel, ficou muito surpreendida quando eu a cumprimentei com dois beijos á boa maneira portuguesa.
O último dia em Toronto passou a correr e eu só pensava: «Logo à noite vamos voltar para a selva. Para Merdeiras». Pensei: «Todo o país se transformou no Expresso. Saí do Expresso mas continuo preso da mesma mentalidade, da mesma mediocridade». Foi um pensamento arrepiante.
Mais tarde
Mallamé afirmava que tudo acaba num livro. Desde há algum tempo, as minhas viagens acabam efectivamente por resultar em livros. Mas em livros que faço só para mim, com fotos e textos.
Mais uma vez o digo: o ideal seria a viagem não ter fim. Mas isso é impossível. Na vida só há uma coisa interminável: a ideia da morte. Seja como for, de uma coisa tenho eu a certeza: a minha viagem é inédita. Nunca ninguém a fez antes de mim. Há tantos caminhos como viajantes. Este foi o Canadá que encontrei. Ou que me encontrou a mim. Quanto a este texto, não é para ser lido, mas sim relido. Acho eu.
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Textos e fotos de Jorge Lima Alves