«Let me remember things
That I don’t know»
John Fogerty
Quando, na Ilha de S. Nicolau, um rapaz se quer declarar, apanha uma pedra do chão para a dar à rapariga que traz debaixo de olho. Se ela a guardar no bolso, quer dizer que aceita o namoro. Nessa altura, cabe ao rapaz escrever-lhe uma carta de amor. Segue-se uma troca de prendas. Se a moça é virgem, oferece ao rapaz uma flor ainda em botão. Se já não for, dar-lhe-á uma flor aberta.
Manda a tradição que o namoro dure, pelo menos, um ano. Quando é marcado o casamento, tem de se escolher um Mordomo. Alguém em quem as duas famílias depositem a sua confiança, pois é ele que vai tratar dos pormenores da boda. Importante é também a escolha da «Bokera», uma amiga da família da noiva que terá por missão preparar o quarto nupcial, geralmente decorado com estrelas de papel brilhante.
Nos casamentos mais tradicionalistas, o lençol da cama deve ser exibido no dia seguinte, para testemunhar a virgindade da noiva. Se em vez disso o noivo aparecer com uma perna das calças arregaçada até ao joelho quer dizer que a noiva não era virgem. Nesse caso, pode devolver a rapariga aos seus pais.
Em São Nicolau, uma das dez ilhas do arquipélago de Cabo Verde, a tradição ainda é o que era. Por isso, quando nasce uma criança, os amigos da família juntam-se todos lá em casa na noite do sexto para o sétimo dia de vida do bébé, a fim de olharem por ele enquanto bebem uns copos. Nessa altura, é de bom tom falar alto e fazer muito barulho, para afastar os maus espíritos. Para este costume, foi encontrada uma causa: é que antigamente morriam muitas crianças no sétimo dia de vida, devido a uma infecção tetânica apanhada durante o parto, que só se revelava ao fim de seis dias de incubação.
Nascimento, casamento... morte. Em São Nicolau, uma das dez ilhas do arquipélago de Cabo Verde, a natureza impõe a sua lei. Aqui ainda não chegaram os cartões multibanco, os centros comerciais, o «stress». Ninguém tem pressa, não há o perigo de ser assaltado e só existem prazeres simples: tomar banho na praia, uma boa conversa à sombra de uma árvore, um passeio pela montanha...
Uma coisa é certa: Cabo Verde entrou definitivamente na rota dos destinos turisticos internacionais. Hoje em dia, qualquer agência de viagens propõe pacotes com viagem e hotel a preços acessíveis, quer para uma única ilha, quer para um pequeno périplo por várias ilhas. Também nas livrarias já se encontram guias turísticos sobre o arquipélago em inglês, francês ou alemão. Em português é que não. Como de costume.
Mas se é verdade que o afluxo turístico está a crescer a olhos vistos, não é menos verdade que os destinos privilegiados são sempre os mesmos: as ilhas do Sal e da Boavista, pelas suas praias magníficas, São Vicente, por causa do cosmopolitismo da cidade do Mindelo e da sua proximidade com a belíssima ilha de Santo Antão, Santiago porque é onde está a capital, mas também o célebre Tarrafal e, finalmente, a Ilha do Fogo, celebrizada pelo cinema e pela relativamente recente erupção do vulcão. Não obstante, e se excluirmos Santa Luzia, que está desabitada, as restantes três ilhas – Brava, Maio e São Nicolau – também valem a deslocação. Sobretudo esta última, tão bela quanto ignorada.
O próprio facto de permanecer à margem dos circuitos turísticos dominantes é um dos seus principais atractivos. São Nicolau permanece um pequeno paraíso de equilibrio ambiental e ecológico. Há muito poucos automóveis e as pessoas que à primeira abordagem se mostram reservadas e quase desconfiadas, depressa se revelam de uma simpatia e hospitalidade surpreendentes.
Com 343 km2 de superfície e uma população de apenas 14 mil habitantes, a ilha é uma pequena pérola de sossego e harmonia, onde as actividades mais importantes são naturalmente a pesca e a agricultura. São Nicolau é a mais rural de todas as ilhas do arquipélago, e uma das mais verdes. Embora muito pequena, a ilha tem uma diversidade incrível de cenários. Pode, por exemplo, estar um calor abrasador no Tarrafal, principal porto da ilha, e um frio de rachar a apenas vinte ou trinta quilómetros dali, no enovoado cimo do Monte Gordo, a mil e trezentos metros de altitude. Diz-se que quando está o céu limpo, o que é muito raro, do cimo do vulcão se podem avistar as outras nove ilhas do arquipélago. Mas para apreciar uma vista magnífica nem é preciso subir tão alto. Há vários locais na montanha em que se pode apreciar em todo o seu esplendor o imenso vale que se estende até ao mar, salpicado de pequenas povoações onde se destaca a vila da Ribeira Brava, capital da ilha.
Ribeira Brava desempenhou, durante muitos anos, o papel de verdadeira capital intelectual de Cabo Verde, graças à abertura de um seminário-liceu em 1866. Foi nesse primeiro estabelecimento de ensino secundário, que chegou a ser considerado como um dos melhores da África ocidental, que estudou Baltazar Lopes, primeiro romancista cabo-verdiano, autor do célebre «Chiquinho». Para além dele, frequentaram aquela escola outros intelectuais cabo-verdianos como António Aurélio Gonçalves, João Lopes e Juvenal Cabral, professor e pai de Amílcar Cabral.
Outra figura ilustre da vila foi o Dr. Júlio José Dias, diplomado pela Faculdade de Medicina de Paris que regressou ao seu país para se dedicar a cuidar dos mais desfavorecidos e que foi ao ponto de doar a sua casa para aí se estabelecer o Seminário, indo residir para outra casa mais modesta nas montanhas. Não admira que o seu busto hoje domine o largo principal.
O seminário foi encerrado em 1931 pelo regime de Salazar e transformado num presídio para deportados políticos (o próprio Mário Soares terá passado por lá). Agora, o edifício encontra-se ao abandono, embora se diga que no futuro será transformado em museu.
A segunda vila da ilha é o Tarrafal, um porto de pesca situado a cerca de meia-hora da Ribeira Brava, onde ainda está em actividade uma fábrica de atum, que se pode visitar. É também muito engraçado esperar a chegada dos barcos de pesca carregados de peixe, de que uma parte é vendida logo ali a retalho por preços que podemos considerar ridículos. Tirando isso, a vila tem pouco para ver, mas mesmo ao lado estão as melhores praias de São Nicolau (nomeadamente Praia da Luz, Praia do Francês), com a curiosidade de aí a areia ser preta e não branca.
Um pouco mais longe, a cerca de seis quilómetros do Tarrafal, encontra-se a Baía Debaixo da Rocha, que alguns consideram a praia mais bonita de Cabo Verde, com areia branca e água absolutamente transparente. De difícil acesso a pé ou de carro, a melhor maneira para lá ir é pedindo a um pescador para lá nos levar de barco.
Entre os outros locais que não podem deixar de ser visitados, conta-se o Juncalinho. A estrada que lá conduz, à beira de uns penhascos de meter medo, tem uma vista fantástica sobre o mar. A pequena aldeia, muito pobre, apetece meter no bolso e trazer para casa. Todo o lugar é muito selvagem e há uma piscina natural, formada por rochas, que é fabulosa para tomar banho. As pessoas chamam-lhe Lagoa.
A Ribeira da Prata também vale bem a deslocação, mais que não seja para ver a famosa Rocha-Escrevida. Os desenhos na pedra, durante muitos anos passaram por pinturas rupestres – o que atestaria que a ilha tinha sido habitada antes da chegada dos portugueses – mas recentemente chegou-se à conclusão que não passam afinal de um fenómeno natural.
No entanto, talvez o local mais espectacular de São Nicolau seja a Fajão de Baixo e os seus arredores, a zona mais verde da ilha, onde estão concentradas algumas das quintas mais produtivas de todo o arquipélago (bananas, papaias, cana do açucar, café. As duas principais atracções da Fajã são a «Galeria» e os dragoeiros. A «Galeria» foi escavada nas montanhas por engenheiros franceses a fim de trazerem da montanha, ao longo de dois quilómetros, água para as muitas quintas da região. Os dragoeiros são árvores que chegam a viver mil anos e a atingir uma altura de dez metros. Já foram comparados – nomeadamente por Jean-Yves Loude, autor de «Cabo Verde - Notas Atlânticas» –, a gigantescos castiçais «carregando na extremidade dos braços folhas pontiagudas, cerradas e organizadas em ramos de estrelas». Há quem lhes chame «árvores-fósseis».
Por último, talvez valha a pena lembrar que São Nicolau é uma das ilhas mais musicais de Cabo Verde. Aqui ainda se improvisam «tocatinas», bailaricos ao som do acordeão diatónico (gaita) e do ferrinho (uma barra de ferro que se raspa com uma vulgar faca de cozinha) ou do cavaquinho. Aqui ainda se dançam valsas, mazurkas, contradanças e outros ritmos que já praticamente desaparecem noutras regiões. Durante a semana não, que é altura de trabalhar, mas ao fim de semana a música explode, um pouco por todo o lado, e a festa dura geralmente até de madrugada. Festa rija, bem regada com grogue (aguardente de cana).
Etiquetas
Textos e fotos de Jorge Lima Alves