Textos e fotos de Jorge Lima Alves

terça-feira, 17 de fevereiro de 2009

Duas semanas em Nova Iorque

1.

Qual é a primeira coisa que fiz quando cheguei a Nova Iorque? Foi comprar a «Time Out», claro, para saber tudo o que havia para ver e ouvir na cidade (é verdade, o bom velho Village Voice, foi completamente ultrapassado como roteiro cultural da Grande Maçã). Tal como já acontece há muitos anos em Londres, a «Time Out – New York» tornou-se na «bíblia» semanal indispensável para saber tudo o que vai acontecer nos próximos dias. Assim, num belo dia 2 de Abril, este vosso criado, de passagem por Nova Iorque, apercebeu-se, de repente, que tanto podia ir ouvir Os Godspeed You! Black Emperor no Bower Ballroom, como o Grant-Lee Phillips no Joe’s Pub, os Heat Brothers no Village Vanguard ou ainda ir ao Harlem assistir à mítica «Amateur Night at The Apollo». Isto para já não falar de dezenas de outros concertos em locais tão lendários e apelativos como a Knitting Factory (que nessa noite prometia quatro projectos diferentes sobre os quais não tínhamos grandes referências), o Blue Note (onde actuava Albita) ou o Iridium (que propunha um Tributo a Lionel Hampton com o Quinteto de Terry Gibbs). No meio de tanta fartura, optámos por ir ouvir John Zorn com uns Masada electrificados no também já mitificado Tonic.
Caso não saibam, «the most important new club for the new music in the world», fica no coração do Lower East Side, um bairro com má fama de Manhattan que se está a transformar num dos locais mais «in» da cidade. A sala, mal se dá por ela, não tem nenhum letreiro à porta e a fachada parece a de um edifício abandonado. Lá dentro, o espaço é relativamente pequeno (mesmo assim maior que o Hot Clube) e a primeira coisa que nos saltou à vista foi a confusão, em cima do palco, atafulhado de tralha. Em pouco mais de dez metros quadrados, estavam um piano de meia-cauda, um outro eléctrico, um órgão Hammond, um sintetizador, uma bateria, um impressionante aparato percussivo, aparelhagens de todo o gênero, colunas, bancos, cabos, fichas... enfim, dir-se-ia não haver lugar para os músicos, tanto mais que se sabia que iam ser sete, os protagonistas do concerto: Zorn (sax), Marc Ribot (guitarra), Cyro Baptista (percussões), Kenny Wollensen (bateria), Jamie Saft (teclados), John Medeski (órgão) e Trevor Dunn (baixo). Um septeto que se revela uma explosiva fábrica de sons, quase uma máquina de guerra. Uma máquina inofensiva, no entanto, que em vez de bombas e balas produz surpresas sonoras e um prazer crescente, à medida que a música nos vai envolvendo, ou que nos vamos envolvendo nela.
Mas, para já, voltemos à sala, que mais parece uma grande garagem ou um pequeno armazém, onde alguém colocou um estrado à guisa de palco e umas quarenta cadeiras, o mais vulgares possível. Só arranja lugar sentado, portanto, quem chega primeiro. Mas a maioria do público está pouco preocupada com isso, aparentemente mais interessada pelo bar que está no extremo oposto do palco. O bar, esse sim, é um senhor bar, um verdadeiro regalo, bem apetrechado e com um balcão espaçoso. Nova Iorque é pródiga nestas incongruências, nestes pormenores insólitos e a música de John Zorn idem, idem, aspas, aspas. Mal entraram em palco (afinal cabiam lá todos), os músicos lançaram-se numa desbunda sónica caótica, com frequentes explosões da bateria, acompanhada por um baixista que parecia ter enlouquecido. A um sinal do líder, porém, o órgão pôs ordem no fugaz estado de sítio, lançando uma linha melódica que julgámos reconhecer, mas logo se transformou noutra coisa e noutra ainda. Tanto o ritmo como a melodia estão constantemente a mudar. Em permanente mutação, a música desenrola-se como uma serpente enfeitiçada por si própria.
Sentado num banco mais alto dos que os outros, Zorn dirige tudo com mão de mestre (e visível prazer). Nada se passa no palco sem o seu consentimento, sem instruções suas. Na realidade, está muito mais preocupado em «puxar» pelos seus companheiros do que em fazer ouvir o seu saxofone. Como Miles Davis, no final da sua vida, quase não intervém, aliás, e mesmo quando o faz, continua a dar ordens aos outros com uma das mãos. Observar a agitação das suas mãos - os seus códigos mudos - é metade do espectáculo. Mas a música é magnífica, até porque todos eles são instrumentistas extraordinários e improvisadores insaciáveis.
Cada tema prolonga-se assim por cerca de vinte minutos a meia-hora e, no entanto, no papel, a música escrita não ocupa mais do que meia-página A-4. Ninguém sabe quando será solicitado para tocar e isso faz parte do jogo (e do gozo). Zorn põe o baterista a dialogar com o percussionista, o guitarrista a afrontar o organista, o baixista a namorar o pianista e por aí fora. Atiça-os uns contra os outros, aproxima-os, separa-os, isola-os, reúne-os a todos num uníssono apoteótico, que afinal se revela não ser uma coda, mas apenas um clímax mais. Quando alguém faz alguma coisa nova ou surpreendente, ou extraordinária, Zorn aponta-o como um exemplo aos outros, com um largo sorriso. De resto, sorri o tempo todo (e nós também).
Depois de dois temas mais lúdicos, com momentos muito intensos e partes mais relaxantes, por vezes a roçar o burlesco, o «maestro» lança uma nova composição com um claro fôlego épico, melodramático. O uníssono inicial tem algo de bélico, quase insuportável. Parece ser uma clara alusão à guerra em curso no Iraque, tanto mais que a bateria ostenta um auto-colante anti-Bush. Será o tema mais curto de todo o set, mas também um dos mais aplaudidos.
Quando saímos para a rua, ainda vimos a levitar, com a certeza absoluta de ter escutado uma das bandas mais excitantes do momento. E vem-nos à memória uma frase que lemos em tempos a propósito de um outro concerto de John Zorn neste mesmo espaço: «Nights like this are what New York is all about».

2.

Quando se começa a falar de Nova Iorque, a dificuldade está em parar. A cidade mais fotogénica do mundo é também a mais generosa para o visitante ávido de novidades. Há ali tanto para ver e fazer que, depois, não se consegue relatar tudo. Nem por sombras. E muito menos numa revista dedicada ao jazz. No entanto, Nova Iorque é a capital mundial do jazz e quem gosta de música improvisada, ou simplesmente de boa música, corre mesmo o risco de sofrer um curto-circuito mental, por excesso de oferta e informação. Por exemplo: só a secção de jazz da Tower Records na Broadway é maior que o departamento de discos de qualquer uma das nossas FNAC. Foi, pelo menos essa a impressão com que fiquei. Isto para já não falar das muitas dezenas de lojas, pequenas, médias e grandes, com discos novos e em segunda mão, onde o coleccionador e o amante de raridades se podem perder (nos vários sentidos da palavra) à vontade. Enfim, não estou a dar novidade nenhuma a ninguém afirmando que existem em Nova Iorque cerca de 100 espaços diferentes – entre teatros, clubes e bares - onde é possível ouvir alguma forma de jazz, todas as noites.
De resto, a própria expressão Big Apple, aplicada a Manhattan, parece ter tido origem nos meios do jazz. Com efeito, há quem defenda que, nos primórdios, os músicos empregavam a palavra «maçã» para designar cidades onde tinham tocado pela primeira vez, pois era como se, devido ao nervoso miudinho, ficassem com um nó na garganta. E como Nova Iorque é o fruto mais apetecido no caminho do sucesso, ficou a Grande Maçã. Há outras teorias para a expressão, mas esta é sem dúvida a que mais nos agrada e nos parece mais plausível.
Claro que a cidade de Martin Scorcese e Woody Allen, não se resume ao jazz, sendo que - tanto como a Estátua da Liberdade, o Empire State Building ou o Edifício da ONU - se impõe uma visita ao Moma, Museum of Modern Art. Como se sabe, o Museu encontra-se fechado para obras, sabendo-se que vai renascer - num projecto do arquitecto Toshio Taniguchi - em 2005. Entretanto, parte do importantíssimo acervo do Museu está, provisoriamente instalada em Queens, onde no mês de Abril se podia ver uma magnífica exposição dedicada a Matisse e Picasso, pondo em relevo os paralelos entre as duas obras aparentemente tão diferentes.
Mais uma vez, exposições é o que não falta em Nova Iorque. Sem querer maçar ninguém, não resisto a falar, mesmo por alto, de uma exposição do fotógrafo Steven Klein que estava patente numa galeria da Wooster Street, por razões que já vão entender. O homem vem do mundo da moda e é conhecido pelo arrojo das suas ideias, mas nada nos preparou para o choque desta exposição centrada na figura de Madonna – a mediática diva pop - e montada com meios inusitados. Os diapositivos resultantes de uma sessão fotográfica que durou, ao que parece mais de oito horas, foram ampliados para tamanhos gigantes e encontravam-se dentro de grandes caixas metálicas, negras. Uma tecnologia designada «x-static pro=cess», permite que as fotos tenham pequenos pormenores animados: uma cortina agitada por uma leve brisa ou as chamas de uma lareira, por exemplo. O efeito é tremendo, tanto mais que os «palcos» que protegem as fotos têm colunas de som por onde sai a voz da própria Madonna, recitando, em «loop», excertos do Livro das Revelações. Em todas as fotos, a cantora assume poses de contorcionista, num cenário de um barroquismo extremado. Espantoso era igualmente era o imponente catálogo – vendido a um preço proibitivo – com mais de 200 fotos impressas num tecido que lembra papel vegetal, onde Madonna parece uma andróide sobrevivente do Blade Runner.
Para regressar ao tema da música afro-americana, não posso deixar de falar das missas negras no Harlem que, infelizmente, muitos visitantes portugueses esquecem, talvez por pensarem que frequentar o bairro ainda é perigoso. Não é. Desde que o carismático Giuliani foi Presidente da Câmara, NY tornou-se numa das cidades mais seguras do mundo. Nós ficámos, aliás, hospedados no Harlem e visitámos todos os outros bairros da megapolis, Brooklyn, Queens e Bronx, nomeadamente, sem o menor sobressalto.
Ir, ao domingo de manhã, a uma missa no Harlem devia ser obrigatório para todos os que gostam minimamente de jazz. Há dezenas de igrejas, mas a mais famosa de todas é, provavelmente, The Abyssian Baptist Church, fundada em 1808. O actual templo só existe, contudo, desde 1923. Ao domingo propõe dois serviços: um às nove e outro às onze horas. O primeiro é preferível, pois o das onze horas é frequentado por mais turistas do que crentes. Do mesmo modo, há a alternativa de assistir à missa numa igreja mais pequena e menos famosa. O coro pode ter menos elementos, o cenário não ser tão grandioso, mas o espírito é o mesmo e a experiência pode revelar-se ainda mais intensa, por razões óbvias. Pela nossa parte, no segundo domingo, optámos pela Second Cannan Baptist Church, na Lennox Avenue, onde a cerimónia começa às 11 e se prolonga até depois da uma da tarde.
As missas baptistas têm pouco a ver com as nossas. Não são apenas um pretexto para rezar e lavar os pecados, mas também para conviver, trocar impressões, informar-se acerca dos mais diversos assuntos e até para dançar. Para além do indispensável Coro feminino e do órgão, alguns templos também cantores solistas e instrumentistas vários para dar mais colorido e força aos vários momentos musicais, que vão alternando com as intervenções, por vezes muito acaloradas, dos pastores e seus acólitos. Em todos os casos, os visitantes ocasionais são convidados a participar nos cânticos (há livros à disposição dos neófitos) e a bater palmas cadenciadas, como se fosse possível resistir a fazê-lo.
A própria assistência é um deslumbramento para os olhos. Toda a gente vem com a sua melhor roupinha, sobretudo as senhoras que rivalizam em elegância e imaginação. Só as mais jovens não trazem chapéu, e alguns são verdadeiramente deslumbrantes. Mas a jóia mais bonita e vulgarizada entre o público não custa um tostão: são os sorrisos de felicidade dos fiéis, genuinamente contentes por estarem em comunidade, unidos por um ideal comum. Quão longe se está ali do tédio e excessivo formalismo das nossas missas, onde – dir-se-ia – Jesus é enterrado todos os domingos. No Harlem, pelo contrário, ele renasce de cada vez e é uma festa vivida e festejada por todos.
Os Cânticos são belíssimos, as vozes profundas, a musicalidade contagiante. E o organista (ou pianista) não pede licença a ninguém para swingar, quando é caso para isso. É impossível uma pessoa – mesmo a mais cínica e incrédula – não sair de lá com a alma purificada, bem disposta para o resto do dia. O jazz, todo o jazz - pelo menos aquele que não esqueceu de onde vem - está ainda hoje impregnado desta espiritualidade, que se pode respirar todos os domingos no Harlem. Se não acreditam, perguntem a qualquer jovem seguidor de John Coltrane ou Albert Ayler. A música não passa de uma estrada que vai dar ao céu.

3.

Se é difícil parar de falar de Nova Iorque, como já afirmei, também não é fácil dizer qual é o principal sentimento que a cidade nos deixa, no regresso a casa. Toda a gente sabe que é uma cidade de extremos e paradoxos. E que é impossível ficar-lhe indiferente. Como já alguém disse, com os seus quase nove milhões de habitantes (dos quais cerca de 30% nasceram no estrangeiro), «Nova Iorque é talvez demasiado pequena para ser um país, mas também é grande demais para ser uma simples cidade».
Gigante em altura, a megapolis é-o também pelo espírito que aqui reina. Nenhum nova-iorquino duvida que vive no próprio coração do mundo, na cidade mais importante do planeta. Mas não esqueçamos os seus aspectos negativos. Pela sua própria desmesura é um local onde as pessoas se sentem quase permanentemente sob pressão, por vezes ao ponto de se tornarem agressivas (não mais do que em Lisboa, no entanto). Como me disse um nova-iorquino que procurava ultrapassar-me numa bicha para apanhar o metro: «estamos em Nova Iorque não precisamos de ser bem-educados». Disse-mo com um sorriso, como quem pede desculpa, mas havia alguma verdade nas suas palavras: «time is money» e a pressa, aqui, justifica alguns atropelos.
A cidade é tão grande e tão diversa que ninguém pode pretender conhecê-la verdadeiramente, nem que fique um mês ou dois de visita. Provavelmente, nem que se viva lá dois ou três anos. É outro dos paradoxos de que falávamos: a cidade mais fotografada e filmada do mundo esconde milhares de segredos arquitectónicos, de lojas loucas, de pequenos jardins surpreendentes. Por outro lado, é a cidade de todas as culturas e etnias. Chineses, italianos, russos, mexicanos, paquistaneses, árabes, africanos, gregos, portugueses... há restaurantes para todos os gostos e não há nada, absolutamente nada, que não se consiga arranjar algures, desde a primeira edição do primeiro álbum de John Coltrane à primeira edição dos Lusíadas (como se sabe, não existe propriamente uma primeira edição dos Lusíadas, mas sim várias, cada uma com algumas variantes, porque na altura os livros eram feitos um a um e não em grandes tiragens como hoje).
Resumindo: uma visita a Nova Iorque é indispensável não somente para quem gosta de jazz (é tal e qual como para um árabe ir a Meca), mas também para quem queira perceber como é que aquela cultura pôde tornar-se dominante em termos mundiais, ao ponto de se ter tornado uma parte importante da nossa cultura também, quer tenhamos consciência disso ou não. Mas cuidado: como disse Paul Morand, o mais cosmopolita e divertido dos escritores franceses, em Nova Iorque «a bagagem mais pesada é uma carteira vazia».

(Texto escrito em 2003)