Textos e fotos de Jorge Lima Alves

terça-feira, 17 de fevereiro de 2009

Regresso à Índia



Nunca me vou esquecer da Índia. Como é que me iria esquecer da Índia, um país onde basta pintar de azul uma pedra à beira do caminho para ela se transformar num deus?
Impossível esquecer Jaisalmer. Udaipur. Jodhpur. Jaipur. Pushkar. Agra. Benares.
Como poderia esquecer Benares?
Nietzsche definia o homem como “aquele que se faz nascer a si mesmo”. De certo modo, ainda que pareça exagero, na Índia foi como se tivesse nascido outra vez. Sim, de algum modo voltei a nascer na Índia.
Não nasci mal cheguei ao aeroporto de Nova Delhi. Não, não foi aí. Não foi assim. Não nasci, ou melhor, não renasci de uma vez só. Foi um processo gradual. Lento. Inconsciente. Nem sequer dei por isso, só agora, quando me deu para escrever sobre a Índia, é que me apercebi disso. Por isso, é urgente voltar agora à Índia. Não fisicamente (isso não é tão urgente, mas também tenho que o fazer), mas através deste texto. Através da memória.
Claro que esta Índia – a Índia onde renasci – só existe na minha cabeça.
É o que faz a sua importância, aliás.



Sempre me pareceu que não nasci neste mundo. Sempre me pareceu que nasci noutro planeta. Não me identifico com os habitantes da Terra. Não tenho nada a ver com esta gente. Talvez o meu planeta de origem tenha alguma semelhança com a Índia. Não sei. Na Índia, por vezes, ver pela primeira vez era reconhecer. Havia na Índia pequenas coisas que me diziam muito. Pequenos objectos, pequenos gestos. Um odor aqui, um olhar ali. As cores e, sobretudo, as árvores. Havia na Índia muitas árvores que me falavam ao coração. Que me emocionavam profundamente. Das quais me sentia irmão. Vão pensar que estou louco, ou que nunca regulei bem da cabeça, mas as árvores da Índia – em certos trajectos que fiz de comboio ou de autocarro – contam-se entre as mais belas que jamais vi. Aliás, o mais bonito na Índia é o campo. Certas planícies, certas florestas são bem mais bonitas que os mais belos palácios de Udaipur, ou que o próprio Taj Mahal, esse orgasmo “congelado” de um príncipe apaixonado por uma ideia onde cabia o amor, a beleza e a morte. Sim, para mim, no fundo o Taj Mahal é um monumento de esperma. A cor não engana e a forma também não, já tive orgasmos bem parecidos com aquele monumento. Nunca tive foi dinheiro para os mandar imortalizar.



Viajar até um país desconhecido é uma forma acessível de ver o mundo pela primeira vez. Nesse sentido, é um regresso à infância. Na Índia voltei aos tempos dos meus primeiros passos no mundo. Tive que reaprender, não tanto a andar, mas a ver e a sentir.
Porém, quando a viagem acaba, tudo se desvanece. Tudo o que se viveu, tudo o que se viu, se sentiu, se saboreou, já não se consegue na verdade descrever. Nem os diários de bordo, nem as fotografias ou as filmagens ajudam realmente, parece que tudo não passou de um sonho. E uma grande parte – a maior parte, melhor dizendo – das nossas recordações já desapareceram, ou vão desaparecer em breve.
Escrevo este texto contra isso. No maior desespero, porque sei que é inútil. E, no entanto, é exactamente o facto de ser inútil que torna este projecto tão importante aos meus olhos. E pouco importa se é bom ou mau. Escrevo-o porque não posso fazer de outro modo. E, sinceramente, só os livros escritos assim, contra tudo e contra todos, contra nós próprios sobretudo, têm algum valor aos meus olhos. Só quem escreve contra o suicídio merece ser lido (já houve evidentemente quem o tivesse afirmado antes de mim).



Estou sempre a voltar à Índia. A lembrar-me da Índia. De cenas que vi. De certos rostos também. Não exactamente dos rostos, mas das características de certos rostos. Os olhos, por exemplo. São muito perturbadores, os olhos dos indianos. Mais do que os olhos, o olhar. Há olhares que parecem capazes de ver dentro de nós.
Em contrapartida, de modo geral, os indianos são perfeitamente opacos. Impossível adivinhar o que estão a pensar, quando estão a olhar para nós.
Não são só os olhos que me vêm à memória. É muito bonito o sorriso dos indianos. Lá, todos os sorrisos são bonitos. Talvez porque são inocentes, espontâneos e desinibidos. Desinteressados também, diga-se o que se disser. Essa é uma das recordações mais gratas. No meio de tanto lixo, tanta miséria, tanta desgraça, tantos sorrisos, tão bonitos. Uma das razões porque gosto tanto da Índia é essa: o facto de lá ter encontrado tanta criança sorridente, tanta mulher bonita, tanto rosto digno. Há, com efeito, no rosto dos indianos, mesmo nos mais pobres, mais doentes, uma dignidade espantosa. Uma nobreza incrível.
Os olhos, o sorriso, as roupas. Recordo ainda as cores magníficas das roupas das mulheres. E os seus utensílios. As bilhas cromadas ou niqueladas que usam. Muitas vezes amachucadas, tão amachucadas como elas próprias. E os cestos cheios de bostas de vaca, tão importantes para elas, porque as “panquecas” que fazem com elas lhes permite cozinhar e aquecer-se.
Para mim, numa viagem os objectos mais insignificantes são tão importantes como os grandes monumentos. Sim, definitivamente, os pequenos objectos de uso quotidiano, o artesanato, os pormenores de decoração, podem ser, para pessoas simples como eu, tão ou mais importantes como a arquitectura de um templo ou o recheio de um museu. Muitas vezes, um simples par de sapatos, ou uma flor silvestre, comove-me tanto ou mais que uma catedral.



Benares ou Varanasi. Em francês é Bénarès, com um acento agudo e outro grave. Em inglês é (ou pode ser) Banaras. Na Índia vi outras versões, como Benarasi, por exemplo. Como se sabe, a cidade deve o nome aos rios Varuna e Asi, que confluem, mais ou menos, naquele local no Ganges. A cidade está construída ao longo do rio, numa só das margens. Em frente, na outra margem, não há nada. Parece uma ilha deserta: só pedras e ervas. E muita lama, parece. O contraste entre as duas margens é brutal. E, por isso, fascinante. Vista do rio, sobretudo ao nascer e ao pôr-do-sol, a cidade é monumental, toda constituída por imponentes palácios e templos, e grandes escadarias que terminam dentro de água, os chamados Gaths. E a decadência daqueles edifícios, longe de lhes diminuir a grandiosidade, dá-lhes uma aura sobre-humana, como se tivessem sido construídos por um povo que já não existe. Ou que partiu para outro planeta.
Por detrás desse cenário de fachada, esconde-se uma verdadeira espelunca. Uma verdadeira lixeira a céu aberto, tentacular, labiríntica. Quilómetros e quilómetros quadrados de ruas miseráveis, de barracas a fingir que são casas, de esgotos a fingir de ruas, onde brincam crianças e passeiam vacas esqueléticas, à mistura com todo o tipo de veículos. Para já não falar dos milhares de deficientes físicos e nos leprosos.
Como todas as cidades da Índia, Benares tem gente a mais, coisas a mais, demasiado barulho e animais. Tantos odores que, por vezes, o ar se torna quase irrespirável.
A cidade parece estar ali desde sempre e diz-se que é a cidade mais antiga do mundo. No entanto, nenhum edifício tem mais de 200 anos. Seja como for, Benares está fora do tempo, ao lado do tempo, numa espécie de “Twilight Zone”, onde tudo pode acontecer e tudo acontece realmente. Sobretudo o pior.
Dir-se-ia que a cidade existe em função da morte. Que é uma espécie de porta para outras vidas. Ou para o Nirvana que é outro nome para o Absoluto.
A mim bateu-me muito. MUITO.
Em particular a Casa da Morte, com os seus velhinhos recurvados, ocultando-se dos olhares, mas de mão estendida na esperança de uma esmola. Foi um homem que me abordou na rua que me conduziu até lá. Percebeu que eu procurava observar o ritual da cremação e desafiou-me a segui-lo para me mostrar um posto de observação privilegiado. E, com efeito, do segundo andar, lá de cima da varanda, via-se tudo muito bem. O ritual todo. O corpo a chegar, carregado por homens em passo de corrida, envolto numa mortalha amarela brilhante. O banho que se segue e a pira funerária. Lembro-me dos pormenores que o homem não se cansava de fornecer. São precisos duzentos quilos de lenha, pelo menos, para o corpo arder. E mesmo assim, muitas vezes, não arde todo. Nos homens costuma ficar parte da caixa toráxica. Nas mulheres são as ancas, segundo ele, que não ardem completamente. Falou também dos que não podem ser cremados: os doidos e as mulheres grávidas, por exemplo. Esses são atirados inteiros para o rio. Ouvia as suas explicações por alto, demasiado absorvido por um tumúlto de sentimentos e sensações estranhíssimos. Mas lembro-me de ter pensado que queimar os corpos mortos é a atitude mais inteligente. E mais bela também. Agrada-me a ideia de me desvanecer no ar.
Quando já me vinha embora, o homem explicou que aquela casa era chamada Casa da Morte porque aquelas pessoas estavam à espera de desaparecer. Ou porque eram demasiado velhos e ninguém queria saber deles, ou porque tinham doenças terminais. E pediam dinheiro para comprar lenha (para se queimarem, literalmente). A madeira custa caro, ao que parece, pois tem que vir de longe, e aquelas pessoas não têm dinheiro para os tais 200 quilos de lenha que são necessários. Abeirei-me de uma senhora envolta num longo xaile. Não lhe via o rosto, mas era de uma magreza extrema. Estava sentada no chão, de encontro a uma parede escura, húmida. Ela sentiu-me e virou-se, mas sem mostrar a cara e, quando lhe estendi uma nota, ela embrulhou a mão no xaile para a receber. Para que a sua pele não tocasse a minha. Percebi que era isso, mas não porque o fazia. Nunca vou esquecer aquele gesto. Levei dias a pensar naquele momento, naquela silhueta franzina, a tapar a mão para que não houvesse contacto físico. Porque era uma intocável? Para não me pegar a sua doença? Porque não era digna de me tocar ou porque não queria sujar a sua mão com o meu dinheiro?



São muitas as histórias de Benares e não sei se me apetece contá-las todas. Estive lá três ou quatro dias, mas foram dos mais intensos da minha vida. Num certo sentido, ainda estou em Benares.
Benares é, evidentemente, um lugar de desgosto. Mas – por mais escandaloso que esta afirmação possa soar – de um desgosto feliz (para não dizer alegre). Porque é a cidade da morte e logo da libertação. Morrer para um hindu é uma oportunidade para se redimir, para fazer melhor da próxima vez. Só espero que estejam certos, também eu tenho razões de sobra para cá voltar outra vez.



O escritor francês Olivier Rolin afirma num livro, com toda a razão, que «a verdade é que há lugares, paisagens, nomes que se ajustam ao desgosto e outros à alegria». Benares é, evidentemente, um lugar de desgosto. Mas – por mais escandaloso que esta afirmação possa soar – de um desgosto feliz (para não dizer alegre). Porque é a cidade da morte e logo da libertação. Morrer para um hindu é uma oportunidade para se redimir, para fazer melhor da próxima vez.

Uma coisa é certa: em poucos lugares do mundo, nos sentimos tão perto do além.

No mesmo livro, Rolin fala das «relações secretas entre escrever e viajar», alegando que «ambas as actividades atestam uma espécie de instabilidade essencial». Nada mais certo: escrevemos para procurar o nosso lugar no mundo e viajamos pela mesma razão. Enfim, alguns de nós, pois há vários tipos de viajantes. Há os que partem para regressar «diferentes», os que partem com a esperança de não mais regressar e os que não chegam a partir, mas que estão na mesma em viagem. E há uma quarta categoria, algo esquizofrénica – e que é a minha, confesso - que reúne todas estas numa só.

(Texto escrito no ano 2000)