A Robben Island é minúscula (cerca de seis quilómetros quadrados) e bastante árida. No entanto, é um dos locais mais visitados pelos turistas que se deslocam à Cidade do Cabo, pois foi ali que Nelson Mandela - que viria a tornar-se, após trinta anos de cativeiro, no primeiro Presidente eleito democraticamente da África do Sul - passou 18 anos da sua vida. Utilizada como prisão de alta segurança, pelo menos desde o século XVII, Robben Island foi declarada «Património da Humanidade» pela UNESCO. Em 2003, na altura em que por lá passei, o local voltou a estar na ordem do dia, graças à acção promovida por Madiba (como o povo chama carinhosamente ao seu ex-presidente) que reuniu na Cidade do Cabo uma plêiade de músicos ilustres (gente como Bono, The Edge, Peter Gabriel, Dave Stewart, Annie Lennox, Brian May e tantos outros), a fim de atrair a atenção do mundo para a sua nova (e urgente) luta: combater o flagelo da SIDA em África.
Visitei «a ilha maldita» na companhia de Indres Naidoo, um dos muitos companheiros de cativeiro de Mandela, que nos explicou: «46664, o número de que toda a gente fala agora, deve ler-se na realidade 466/64, sendo que os últimos dois algarismos indicam o ano em que o nosso líder foi preso». Logo a seguir, acrescenta, sem disfarçar o orgulgo: «Eu era o 885/63, o que quer dizer que fui preso um ano antes».
Este sul-africano de origem indiana, cujo pai foi amigo de Gandhi, assegura que foi apanhado em consequência de uma armadilha montada com a cumplicidade de um colega. Tentava dinamitar uma linha de caminho-de-ferro e ficou ferido por uma bala. Mais tarde, em consequência da tortura e dos maus tratos que sofreu na prisão, ficou surdo de um ouvido e hoje é preciso gritarmos com ele se nos quisermos fazer entender.
Traído por um camarada de partido, Indres Naidoo cumpriu uma pena de dez anos de trabalhos forçados. Com o fim do Apartheid, foi nomeado senador do Parlamento Nacional, mas agora está reformado. Como muitos dos seus antigos companheiros de prisão, parece ter uma necessidade quase doentia de evocar as condições em que viveu em Robben Island.
Antecipando-se à nossa pergunta assegura: «Não, não me importo nada de aqui voltar. Na verdade, penso que enfrentar o passado é uma forma de nos renovarmos.»
A visita guiada começa logo ao sair do barco. No cais estão fotos antigas, muito ampliadas, que documentam as condições em que os presos eram transportados, ligados uns aos outros por cadeias pesadíssimas. Em 1963, quando Indres ali chegou, a prisão tinha um aspecto muito diferente do que tem actualmente.
«Estes edifícios todos foram construídos por nós, ao longo dos anos», explica o nosso anfitrião. «À chegada davam-nos uma colher de pau, um bocado de sabão azul, e um farrapo que fazia de toalha. Os sapatos eram escolhidos ao calhas, por vezes ficávamos com um número 43 para um pé e um 41 para o outro. Com a roupa era a mesma coisa: a um preso alto podiam dar números pequenos e a um baixinho umas calças e uma camisola enormes.»
Nesse tempo, encontravam-se em Robben Island muito presos de delito comum. Ladrões, assassinos, violadores, organizados em «gangs», que se guerreavam constantemente. «As autoridades pensavam que com a sua bestialidade, juntamente com a dos guardas, nos conseguiriam quebrar. Mas como éramos uma centena de presos políticos, eles não se metiam connosco e, na verdade, aconteceu o contrário do que os guardas pretendiam. A nossa determinação e consciência política começou a conquistar adeptos junto dos criminosos, pelo que as autoridades optaram por os retirar pouco a pouco da ilha, que acabou destinada exclusivamente aos presos políticos, sobretudo do ANC e do PAC (Pan-Africanist Congress).»
Num tom calmo, mas vivo, que trai uma real emoção, Indres evoca a brutalidade dos guardas e o médico da prisão, um tal dr. Van den Bergen, que examinava os presos à chegada. «Examinava-nos à distância, obrigando-nos a abrir a boca e a afastar as pernas com um bastão, para nos dar, invariavelmente, como aptos para todo o serviço, mesmo se alguns de nós sofriam de asma, ou de insuficiências cardíacas e respiratórias.» Ao falar do médico, aflora uma ponta de ódio na sua voz. No entanto, afirma que não guarda nenhum rancor aos seus carcereiros, nem mesmo àqueles que o maltrataram. E assegura que nunca procurou revê-los, ou vingar-se de alguma maneira.
Os piores momentos eram passados nas pedreiras. Condenados a trabalhos forçados, todos tinham objectivos a cumprir. «No final do dia, os guardas mediam a quantidade de pedra partida e se não tivéssemos atingido as quotas estipuladas podíamos ser privados de comida.» Entre as cenas que mais o impressionaram, num desses locais, conta-se a de um preso de delito comum que um dia enterraram na terra até ao pescoço. E sobre quem um guarda acabou por urinar, dizendo. «Tens sede? Então toma lá 'whisky' do melhor.»
Muitas histórias deste calibre foram vividas por Indres Naidoo, Nelson Mandela e companheiros. Para conhecer melhor esta realidade, recomenda-se a leitura da autobiografia de Mandela, A Long Way To Freedom. Segundo Indres Naidoo (que também escreveu um livro, que nos recomenda com muito empenho), essa autobiografia foi parcialmente escrita ali mesmo, na cela 5 do Bloco C, em folhas de papel higiénico.
O pequeno barco que liga a Cidade do Cabo à ilha leva mais ou menos meia hora para percorrer os 12 quilómetros. Há visitas guiadas todos os dias, que permitem visitar as várias instalações da prisão e a igreja, mas também o cemitério dos leprosos e o campo onde os presos iam partir pedra. Não é preciso ter muita imaginação, para sentir real compaixão pelos muitos milhares de almas penadas por ali passaram desde o século XVI.
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Textos e fotos de Jorge Lima Alves