Oaxaca, Puebla, Querétaro, San Miguel de Allende, Guanajuato... só o enunciado dos nomes já faz sonhar.
A minha viagem ao México começou há já muitos anos, quando comecei a ler Octavio Paz e a ouvir «rancheras». Chavela Vargas e, mais tarde, Lila Downs, reforçaram o meu desejo de um dia atravessar o Atlântico para ir ouvir ao vivo os mariachis.
Cheguei ao México no dia 27 de Outubro de 2008, cerca de 12 horas depois do que previa, pois em Madrid, onde chegámos por volta da meia-noite, não pudemos embarcar por falta de lugar. Como o voo estava «overbooked», deram-nos uma indemnização de 600 euros a cada um (mais do que o salário mínimo em Portugal!) e colocaram-nos num hotel de quatro estrelas com a promessa de que apanharíamos o primeiro avião da manhã.
Adormeci a pensar que a viagem não podia ter começado de maneira mais auspiciosa e que Thoreau tinha razão quando afirmava: «o trajecto está preparado para nós, quer viajemos depressa ou devagar».
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Já no avião, ainda de madrugada, li num jornal comprado no aeroporto uma entrevista com um escritor chamado Christian Salmon que sustentava a certa altura: «Toda a gente na mediasfera é escritor e leitor ao mesmo tempo». Segundo ele: «É como se fossemos todos jogadores de póquer à volta de uma mesa e como se cada jogador em vez de cartas tivesse histórias para contar». Na sua opinião, «o jogo consiste em conseguir que a tua história seja dominante». Falava, essencialmente, dos políticos e dos meios de comunicação e dava como exemplos os então candidatos à presidência dos EUA: Obama e McCain. «McCain lançou Sarah Palin, que é uma história e uma personagem – sexy, puritana, conservadora e empreendedora». Segundo ele, os jornais atiraram-se a ela porque precisam de histórias novas todos os dias, mas depressa surgem outras histórias mais atraentes para os leitores. «Por isso», dizia Salmon, «os políticos hoje são mais surfistas do que emissores de informação». E concluía: «Obama é o surfista perfeito».
Tudo se tornou simulacro, portanto. Não há maneira de distinguir entre a realidade e a ficção, entre a verdade e a mentira. Por isso, é importante fazer «contra-narração». Informar de verdade, desmascarar as ficções, procurar a verdade através da argumentação, da análise e da explicação. «É preciso reconstruir espaços contaminados, onde a realidade possa aparecer de novo e onde haja experiência real porque não se pode apreender a realidade, mas pode-se apreender a experiência do real». A conclusão é do tal Salmon.
Tudo se tornou simulacro, portanto. Não há maneira de distinguir entre a realidade e a ficção, entre a verdade e a mentira. Por isso, é importante fazer «contra-narração». Informar de verdade, desmascarar as ficções, procurar a verdade através da argumentação, da análise e da explicação. «É preciso reconstruir espaços contaminados, onde a realidade possa aparecer de novo e onde haja experiência real porque não se pode apreender a realidade, mas pode-se apreender a experiência do real». A conclusão é do tal Salmon.
Que tem tudo isto a ver com a minha viagem ao México? Nada, aparentemente, mas a verdade é que viajo também para pensar, para me informar e o que leio em viagem acaba por ser tão importante como o que vejo. Numa viagem, não são propriamente os monumentos o que mais me interessa, mas as ideias que me suscitam as coisas e as pessoas.
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Como o voo de Madrid para a cidade do México dura 12 horas, tive tempo para mergulhar na (re)leitura das «Mensagens Revolucionárias» de Antonin Artaud que foi ao México para fugir da civilização europeia. «A ignorância, esclarecida e consciente, é o cimento da verdade», diz Artaud a dado passo, o que remete de algum modo para a citada entrevista com Christian Salmon.
O México do Artaud, tal como o descreve nos seus textos era completamente idílico. Idealizado, ao ponto de ele afirmar, com uma convicção que só nos pode fazer sorrir: «O actual Tibete e o México são os nós da cultura do mundo».
Pus-me a pensar: e eu, que México vou procurar?, para logo concluir: seria mais acertado perguntar que México vou encontrar, pois em todas as minhas viagens interessa-me sempre mais encontrar do que procurar.
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No aeroporto em Lisboa, e a pensar nas tais 12 horas que ia passar entalado como uma sardinha, comprei antes de embarcar um livro do David Lynch intitulado «Em Busca do Grande Peixe - Meditação, consciência e criatividade». Na contracapa, o livro prometia dar a conhecer a relação do cineasta com o mundo. Nada menos. Grande desilusão. Na verdade, ao longo da obra, Lynch limita-se a divagar sobre os benefícios daquilo a que chama «meditação transcendental», que ele acha ser uma ferramenta inigualável para desenvolver a criatividade.
No fundo, é o livro de um religioso convencido que a meditação leva à felicidade e à paz e devia ser ensinada às crianças. Em lado algum, no entanto, explica como se chega à transcendência. Suponho que é necessário ser iniciado, mediante pagamento, para que alguém faça o favor de nos indicar o caminho.
Gosto da maioria dos filmes de David Lynch, cheios de mistérios e de personagens fortes que apelam à imaginação, mas cada vez mais me parece haver uma parte de charlatanice naquilo que diz e faz (estou sobretudo a pensar no último filme dele, «Inland Empire»). Este livro só veio confirmar essa ideia, embora seja admirável a sua persistência em levar avante as suas ideias, assim como a sua capacidade para envolver os outros em projectos tão pessoais.
Enquanto lia o livro, pensava: no México vou entrar noutro mundo, enfrentar muitos mistérios. Todos os dias haverá coisas novas para descobrir. Viajar, pelo menos para mim, é como entrar num filme realizado por um desconhecido onde se é ao mesmo tempo actor e espectador. É participar numa história como protagonista sem ter a mínima ideia de como tudo se vai desenrolar.
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Chegado ao hotel, tomei as primeiras notas:
Demasiado cansado para escrever, não quero esquecer os vendedores de CD no Metro (música aos berros com um altifalante às costas, como uma mochila, e o pregão: «10 pesos! 10 pesos!»). Demasiado carregado para poder fazê-lo, fiquei com pena de não poder fotografar (ou filmar) o cais do Metro literalmente a abarrotar de gente, com polícias de dez em dez metros em cima de uns pedestais a vigiar o pessoal, de metralhadora em punho.
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O nosso Hotel, bem decadente, chamava-se Isabel e ficava não muito longe do Zócalo. O quarto tinha quatro camas de casal e era enorme, tipo camarata. Também a casa de banho era enorme. Apesar do cansaço extremo fomos jantar ao Los Girasoles, um restaurante chique muito típico com empregados solícitos e eficientes. Caro, mas bom.
Também o desayuno, na manhã seguinte, se revelou uma agradável surpresa. Tão cedo não vamos esquecer aquele café com leite delicioso no Café El Popular.
No Zócalo – que o Guide du Routard diz ser a segunda maior praça do mundo, a seguir à Praça Vermelha de Moscovo – encontrámos uma gigantesca exposição de altares aos mortos. Aí fiz as primeiras fotos, como sofreguidão, enquanto reparava que a poluição cobre os prédios de fuligem, tornando-os escuros e acentuando-lhes a idade.
De tudo o que vimos nesse dia, recordo principalmente esta notícia que vinha no «La Jornada» (o diário que comprei quase todos os dias durante a minha estada no México): «Em 14 anos gastaram-se 200 mil milhões de dólares para combater a pobreza, que entretanto aumentou 38,8 por cento».
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No dia seguinte, cumprindo o plano traçado em Lisboa, lá fomos nós, de autocarro, para Oaxaca numa viagem que durou seis horas. Pelo caminho, acompanharam-me montanhas espectaculares, algumas literalmente cobertas por cactos erectos como homens de braços abertos. Lembrei-me de um senhor chamado Aldo Leopold que dizia: «É preciso pensar como uma montanha». Mas montanhas também me trouxeram à memória as mensagens revolucionárias de Antonin Artaud, para quem «o México é o único sítio do mundo onde a vida oculta está à superfície, na paisagem».
À entrada de uma portagem, estavam homens a vender cachorrinhos. Infelizmente, não consegui fotografá-los.
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Em Oaxaca, como se esperava, o ambiente era de festa. Música, bailes, foguetes, por todo o lado. As ruas estavam apinhadas de gente, havia altares espectaculares em cada esquina e os pregões dos vendedores de balões e guloseimas misturavam-se com as mil músicas que irrompiam por todo o lado. Na catedral, deparámos com um concerto belíssimo com orquestra e coro interpretando a «Missa Solene» de Beethoven.
O nosso hotel (Casa Arnel), estava cheio de americanos, quase todos com mais de 50 anos. Muitas mulheres sós. Todos me pareceram muito teatrais no modo como falam uns com os outros. Frases enfáticas, sorrisos demasiado rasgados, grandes gestos. Riam alto por tudo e por nada como quem diz: «Somos os senhores do mundo e sabemo-lo». E, com efeito, os mexicanos mostravam-se muito subservientes com eles, sempre à espera de uma «propina».
Connosco, que somos mais escuros e discretos, os mexicanos mostravam-se mais genuinamente simpáticos, mas também menos prestáveis.
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Visitámos Monte Alban logo pela manhã. Chega-se lá acima (cerca 2 mil metros de altitude) e cai-se numa espécie de encantamento. Trata-se de uma das mais antigas cidades pré-hispânicas, mão é preciso conhecer a história da antiga capital dos Zapotecas (diz-se que data de 500 antes de Cristo), nem o significado daquelas pedras. Basta olhar em volta, ver a praça principal, o vale e as montanhas em fundo. Êxtase garantido. Os sacerdotes sempre souberam escolher os locais de culto.
No meio das ruínas, há estrelas esculpidas por todo o lado das quais as mais antigas são chamadas los dançantes, pois exibem figuras contorcidas. Ao que parece, não representam dançarinos mas antes prisioneiros de guerra sacrificados.
Junto ao campo de Jogo da Bola, a um mexicano daqueles muito típicos, a quem só faltava o sombrero (que pelos vistos caiu completamente em desuso), comprei umas estatuetas talhadas em pedra. Três réplicas em miniatura de deuses antigos. O homem tinha um bigode à Zapata e um sorriso bonito. Arrancou-me 200 pesos e fizemo-nos rir um ao outro. Lembro-me de ter pensado: viajar é coleccionar histórias, recordações, fotografias. Tudo em vão: procuramos coleccionar momentos que não conseguiremos guardar por muito tempo.
Junto ao campo de Jogo da Bola, a um mexicano daqueles muito típicos, a quem só faltava o sombrero (que pelos vistos caiu completamente em desuso), comprei umas estatuetas talhadas em pedra. Três réplicas em miniatura de deuses antigos. O homem tinha um bigode à Zapata e um sorriso bonito. Arrancou-me 200 pesos e fizemo-nos rir um ao outro. Lembro-me de ter pensado: viajar é coleccionar histórias, recordações, fotografias. Tudo em vão: procuramos coleccionar momentos que não conseguiremos guardar por muito tempo.
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No México, a pobreza está por todo o lado e, naturalmente, faz mais impressão nos velhos e nas crianças. Alguns andam na rua a vender amendoins, rebuçados, colares… A vida dura não lhes estragou os sorrisos. Quando riem, os mexicanos irradiam um encanto que nós europeus já perdemos há muito.
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Depois de Monte Alban, comemos no mercado de Oaxaca «comida corrida», por tua e meia: canja (com arroz, batata, pera abacate) e mole negro com feijão e arroz, acompanhados por sangria. O mole negro é uma especialidade de Oaxaca e muito típico do Dia dos Mortos.
Na rua, a morte estava, claro, por todo o lado. A paródia da morte. O Dia de los Muertos, que afinal dura três dias como o Carnaval, é uma verdadeira orgia de criatividade. Os mexicanos acreditam que nestes dias os seus defuntos os vêm visitar e oferecem-lhes fruta, pão, flores. Por todo o lado se vendem caveiras em açucar e o tradicional «pan de los muertos».
Nas ruas, até as crianças recém-nascidas são transvestidas de esqueleto e há inúmeros diabinhos dos dois sexos. Os travestis aproveitam para se expor à luz do dia. A festa reveste todas as formas possíveis, cada um a vive à sua maneira.
Rodeado de tantos fotógrafos, encolhi-me. A minha máquina nunca foi tão pequenina como ali em Oaxaca. Seria necessário filmar tudo, pensava eu, mas como isso não é possível, duas ou três fotos têm que bastar.
O que nunca conseguiria descrever foi a noite que passámos no Cemitério. Toda a terra se junta ali. É uma verdadeira folia. Só vos digo que quando regressámos ao hotel, eu tinha cotos em vez de pés e carregava uma montanha às costas.
Dormi como um anjo, apesar de na rua a música continuar aos altos berros.
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No primeiro dia de Outubro, véspera dos meus anos, na zona pobre da cidade, vi um cartaz que prometia consultas médicas por 20 pesos (um euro e pouco).
Apesar do cansaço acumulado, visitámos o Convento de São Domingo, com a sua igreja fabulosa e um museu interessantíssimo. Na livraria do Museu comprei dois livros: um de Roberto Bolaño e outro de Juan Rulfo. Do primeiro, escritos para cinema; do segundo, alguns contos. Comprei também um diabo disfarçado de freira.
À noite, na Biblioteca central, assistimos a uma Comparsa e tivemos que dançar com os actores.
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O patrono, ou melhor, a patrona de Oaxaca é «A Solidão», a última etapa de Maria, a virgem de luto, mãe de Cristo morto. O emblema da autarquia de Oaxaca é a cabeça de uma princesa degolada: Donagí, símbolo da união entre mixtecos e zapotecos. E o hino dos oaxaquenhos é um canto fúnebre intitulado «Deus Nunca Morre».
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Em Puebla, a nova etapa da nossa viagem, o lema parece ser: «A Morte É Um Sonho». A frase está inscrita por todo o lado neste último dia dedicado à morte e serviu de mote para uma bem interessante projecção de slides na fachada da catedral.
Muito diferente de Oaxaca, Puebla não é só maior como, aparentemente, mais rica, até arquitectonicamente. Adorei os prédios revestidos a azulejo, jogando geometricamente no contraste com o tijolo.
No autocarro que nos levou de Oaxaca para Puebla, quando já estava toda a gente sentada no seu lugar, um segurança entrou e filmou todos os passageiros. A meio da auto-estrada, fomos parados por uma patrulha de militares que nos faz sair da camioneta para revistar toda a bagagem que seguia no porão do autocarro. Os militares estavam armados com grandes metralhadoras, acompanhados por cães que nos farejaram. Foi bastante assustador.
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No México, há quem adore a «Santa Muerte», como se fosse uma entidade divina. Num jornal que li no tal autocarro, um professor de antropologia lembrava que a tradição mexicana implica celebrar os mortos e não a morte. No mesmo texto afirmava que a guerra dos «carteles» já provocara, só naquele ano, mais de 3.800 mortes. Rematava o seu artigo afirmando: «No México, rimos da morte mas na realidade é por medo».
O culto da morte existe no México há mais de três mil anos, lembram os que a adoram. Uns chamam-lhe «La Flaca», outros «La Comadre», «La Bonita», «La Señora» ou «La Niña». Mas também «Aurora», «Niña Branca» ou «Dama de Negro».
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Entretanto, ia lendo, aqui e ali, sempre que podia, «El Gaucho Insufrible» do Bolaño. A novela que dá o título ao livro é curiosa, mas mais para a frente há outra história ainda mais espantosa: «El Policía de Las ratas». O livro inclui ainda uma espécie de ensaio sobre literatura e doença onde a páginas tantas se diz: «Mas tudo chega. Chegam os filhos. Chegam os livros. Chega a doença. Chega o fim da viagem». Bolaño já estava doente quando escreveu isto. Faleceu em 2003.
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O Museu Amparo, com uma colecção de peças históricas e antropológicas de valor incalculável, impressionou-me deveras. Por ser segunda-feira a entrada era à borla, mas tivemos que pagar 50 pesos para poder tirar fotografias.
Para além do acervo do Museu, vimos uma exposição temporária de uma tal Betsabée Romero intitulada «Lágrimas Negras». Inspirada por todo o tipo de carros, a exposição põe em evidência, com bastante humor, «a tensão entre velocidade, movimento e trajectória, mas também entre tecnologia e auto-destruição».
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Passeando pelas ruas, lembrei-me do preceito de Sun Tzu: «Quando perto, finge-te longe; quando longe, finge-te perto».
Numa montra, um letreiro dizia: «Se busca chica activa». Que delícia!
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No dia das eleições nos EUA, estávamos em Queretaro, uma cidade que, segundo o meu guia, tem 3 mil edifícios históricos. Eu só pensava: meus ricos pés!
Nessa manhã, um avião caiu em plena cidade do México matando os seus 9 ocupantes. Vinha de San Luís Potosi e trazia políticos a bordo. No dia seguinte, a chamada de capa do La Jornada era «Se desploma la aeronave que le conducia de SLP al DF – Muere Mouriño». Na nave seguia o braço direito do presidente do México, além de outras pessoas, incluindo dois pilotos e uma hospedeira. Fiquei sem saber se deveu a um acidente ou a um atentado.
O mesmo jornal anunciava, também na primeira página, a vitória do Obama: «El cambio há llegado a EU – Aplasta Obama».
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De Queretaro seguimos para San Miguel de Allende, a cidade mais bonita que vimos no México, e uma das mais encantadoras que jamais conheci. No centro de tudo está uma catedral muito original e um Zócalo que é um verdadeiro jardim. Dali partem, em todas as direcções, ruas que apetece percorrer de tão bonitas que são as casas com as suas cores fortes, contrastantes. Há quem se queixe da quantidade de turistas que aqui vêm parar. Muitos estrangeiros, principalmente morte-americanos, já compraram casa aqui e aqui vivem a sua reforma, pelo menos uma parte do ano. Graças a eles, a cidade prospera e está bem arranjada, cheia de boutiques coloridas e galerias de arte. Há mesmo vários hotéis com cinco estrelas, restaurantes finérrimos e bares que não ficam atrás dos de Londres ou Paris. Mas o México pobre não está longe e nas imediações da catedral há uma pequena multidão de velhotes a pedir esmola e de crianças descalças a jogar à bola ou a subir às árvores.
Ao almoço, no El Tomato (talvez o melhor restaurante vegetariano em que comi na vida), um casal meteu conversa connosco. São canadianos (de Halifax) e há 13 anos que vêm para San Miguel sempre que podem. Há três anos compraram uma casa, que ainda estão a recuperar e decorar, e estão a pensar vir viver para cá quando se reformarem.
Aqui muitos mexicanos usam chapéus e botas à cow-boy, enquanto os polícias fazem a ronda a cavalo, com a pistola a sair do coldre e trajes de outros tempos, parecidos com os que se vêem no filme Álamo, por exemplo.
San Miguel é também um paraíso para quem gosta de artesanato e comprámos várias peças lindíssimas, super-baratas.
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De San Miguel de Allende seguimos para Guanajuato na Flecha Amarilla, uma companhia de autocarros que ainda não tínhamos experimentado. Connosco viajou um jovem coreano. Chamava-se Junghee Lee (apodrpooh@gmail.com) e era estudante de Química. Depois de cumprir o serviço militar obrigatório (dois anos, na Coreia do Sul) decidiu percorrer uma boa parte do México, mesmo não falando espanhol ou inglês. Para comunicar, socorria-se de um tradutor electrónico de bolso e dormia sempre na pensão mais barata que indicava o seu Lonely Planet. Acabámos por o convidar para jantar e revelou-se muito divertido tentar-lhe explicar o que é o fado ou a importância de Fátima para os católicos. Segundo nos assegurou, está nos seus planos, um dia visitar Portugal.
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Em Guanajuato, cujo centro histórico é património da Unesco, visitámos, como não podia deixar de ser, o Museu Diego Rivera e vimos, na Universidade, uma exposição muito interessante sobre um fotógrafo que cobriu a Guerra Civil de Espanha. Infelizmente, esqueci o seu nome.
Guanajuato é muito fotogénica com as suas colinas repletas de casas coloridas. Parecem peças de lego ao longe. As ruas são frequentemente íngremes e labirínticas, mas não faltam, como em todas as cidades mexicanas, igrejas bonitas, praças aprazíveis e atraentes lojas de artesanato.
O nosso hotel (Casa de Pita) ficava mesmo por detrás do Teatro Principal. Não era bem um hotel, de resto, mas uma modesta casa de hóspedes. O centro da casa é a sala de jantar onde os hóspedes se reúnem todas as manhãs, às nove em ponto, para tomar o pequeno-almoço em conjunto. O nosso quarto, muito castiço, tinha uma casa de banho minúscula, mas janelas amplas.
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No «Correo» (jornal local), li que um polícia ganhava em média 6 mil pesos por mês (cerca de 400 euros). No mesmo jornal contava-se a história do comandante Alejandro Parada Perez, assassinado na véspera à porta de casa. O seu pai, também polícia, também foi assassinado quando ele tinha 13 anos. Segundo o jornal, o homem que o matou nunca foi detido ou sequer identificado. Fiquei com pena de não ter o talento de Bolaño para escrever uma novela a pretexto desta notícia.
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Dona Pita, a nossa hospedeira, já esteve em Portugal. (Lisboa, Porto...) Adorou. Na sala havia fotos dela quando era nova, com grandes penteados. Numa das fotos está vestida de noiva. Era bem bonita. A sua irmã, que vive em Monterey, nos Estados Unidos, estava de visita e tomou o pequeno-almoço connosco.
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Na manhã seguinte, acordei angustiado porque se aproximava a passos largos a data de regressar a Portugal. Detesto regressar a casa. Por mim continuaria a viajar pelo mundo até morrer.
Por falar em morrer, visitei relutantemente o Museu das Múmias, um must da cidade. Depois subimos no funicular até Pipila para ter a cidade aos pés. Espectáculo magnífico. As casas salpicam de cor as colinas e dão à cidade um encanto único, inesquecível.
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Na camioneta para a cidade do México encontrámos pela segunda vez um casal australiano que viajava com três filhos pequenos, sendo que o mais velho teria uns sete anos no máximo. Carregados com enormes mochilas e um bébé de colo forçam a admiração de qualquer um.
Desta vez fomos parar ao Hotel Havana. Um achado. 200 pesos por noite (12 euros) por um quarto enorme, como cama king-size, casa de banho privativa e TV cabo.
À saída do metro, estava no passeio uma mancha de sangue e umas luvas de paramédico abandonadas. Mais adiante, uma rua estava fechada pela polícia.
No Zócalo, às 6 da tarde, estavam centenas de vendedores e famílias inteiras a passear. Na praça, oradores como em Hyde Park. Discursos políticos rivalizam com exortações religiosas.
Nessa noite, jantámos na espectacular Casa de los Azulejos, no centro histórico, do qual se conta que foi o primeiro local onde Pancho Villa foi com a sua tropa quando tomou a cidade. No primeiro andar há um fresco de Orozco.
Nessa noite, jantámos na espectacular Casa de los Azulejos, no centro histórico, do qual se conta que foi o primeiro local onde Pancho Villa foi com a sua tropa quando tomou a cidade. No primeiro andar há um fresco de Orozco.
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Consta que vivem na cidade do México, mais de 20 milhões de pessoas. Talvez mesmo já 30 milhões. Há quem chame à cidade «El Monstruo». Um terço da população do país vive nas entranhas desta monstruosidade, alimentando-o e alimentando-se dele.
A cidade, a que chamam DF, apaixonou Maiakovski, Breton, Artaud. Buñuel morreu lá, no dia 29 de Julho de 1983.
Quem ali reside tem orgulho de viver na «maior cidade do mundo» e gosta de lembrar que a Avenida Insurgentes tem 40 quilómetros de extensão. Carlos Fuentes descreveu o Distrito Federal dizendo que tem «o corpo de David com a cabeça de Golias».
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Há polícia em todo o lado, com as suas pistolas à cowboy. Chega a assustar a ostentação de tantas armas.
Como não podia deixar de ser, visitámos o Museo Nacional de Antropologia, o Castelo de Chapultepec e o bairro de Coyoacán, onde está a famosa casa azul de Frida Kahlo. No fim da visita, apontei no meu caderninho: A diferença entre olhar e ver? Olhamos com os olhos, vemos com o coração.
Reservámos o último dia para compras no Mercado de artesanias, e na loja Fonart (Fondo Nacional para el fomento de las artesanias).
Depois, fomos passear por Polanco, um dos bairros mais chiques, onde descobrimos um restaurante português, que era o mais concorrido das redondezas.
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No avião de regresso, Roberto Bolaño ajudou-me a suportar a viagem. Li «Entre Parentisis» com a tristeza de o saber morto. A admiração que ele tinha por Kafka é igual à minha. Partilhamos também o mesmo amor pelo poeta chileno Nicanor Parra. Temos, aliás, outras coisas em comum: ambos fomos exilados e ele jogava sempre com o número 11 na camisola (embora ele futebol e eu basket).
Diz ele e é verdade, que a literatura é um exílio. Sem verdadeiras raízes, sem uma terra onde deseje regressar, estou em Portugal como estou no Expresso: apenas porque tenho que estar em algum lugar.
Sobre Swift, Bolaño escreve: «para ele “exílio” era o nome secreto de viagem». Mais adiante interroga-se: «Não seremos todos exilados? Não estaremos todos vagando por terras estranhas?». Ele tem razão: literatura e exílio são duas faces de uma mesma moeda.
Sobre a cidade do México, Bolaño diz que já se assemelhou ao paraíso, mas que hoje em dia mais parece o inferno. Talvez seja verdade, mas não foi o que senti.
Durante a viagem, como já tinha feito na Índia e noutros locais, distribuí um montão de canetas e roupas velhas. Para casa trouxe, como sempre, bastantes bonecos e máscaras. A mais bonita das máscaras representa o diabo com cornos (que muito intrigaram os aduaneiros no aeroporto) e a língua de fora, comprida, retorcida que, infelizmente, se partiu dentro da mochila. Outras máscaras representam animais: uma ave, um porco, um lobo. Todas têm aquele aspecto naif e frágil de que eu tanto gosto.
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Quando se viaja de Oeste para Este o tempo passa mais depressa. A noite cai como uma cortina num palco. Almoçamos e já está escuro.
Regressar mata a viagem. Abre a porta ao esquecimento. Ao nada. Vem-me à memória uma frase do Gilles Lapouge que não esquecerei mais: «Não vou para um país para o conhecer mas para o ignorar um pouco melhor, não vou para o encontrar mas para o perder e me perder também».
Já agora, permitam-me que cite também Nicolas Bouvier: «Uma viagem não precisa de justificações. Depressa provará que se basta a si mesma. Julgamos fazer uma viagem, mas rapidamente é a viagem que nos faz, ou desfaz».
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Quando cheguei a casa, a primeira coisa que fiz, depois de pousar a mala e fazer xixi, foi escrever : Viajar é uma ode ao carácter imprevisível da existência e à beleza do desconhecido. Na nossa busca do local perfeito, o sonho por vezes engole-nos. Para mais tarde nos cuspir ou nos vomitar. Sinto-me sempre um naufrago de cada vez que chego ao aeroporto da Portela.