Cadernos de Viagem

Textos e fotos de Jorge Lima Alves

quinta-feira, 18 de fevereiro de 2010

Caderno romano

30 de Janeiro de 2010


Primeira constatação, primeira surpresa: pensava que nunca tinha estado em Roma e afinal já cá tinha vindo várias vezes. Em sonhos, pelo menos. A cidade magnífica onde decorreram alguns dos meus sonhos mais espectaculares, afinal era esta e eu não sabia. Os esmagadores monumentos que não consigo fotografar a dormir, estavam aqui à minha espera. É uma sensação estranha e poderosa. Como Diz Michel Onfray: «Tout voyage voile et dévoile une réminiscence».
Por isso, apesar do frio e dos chuviscos frequentes, atravessei (atravessámos) a cidade a pé, numa ânsia louca (e descabida) de tudo descobrir imediatamente. Em poucas horas fomos da estação (Termini), onde fica o nosso hotel, até a Trastevere, do outro lado do rio, onde a Raquel queria jantar.



A vista da ponte é magnífica e tirei aí as minhas primeiras fotografias. Na outra margem, dei de caras com a «Casa de Dante». Foi gasolina para a minha já incendiada imaginação.

Bairro popular por tradição (e a tradição aqui remonta à época dos Césares), o Trastevere é uma espécie de Bairro Alto romano com muitos bares e restaurantes, frequentados sobretudo por estudantes e turistas.

Antes de jantar, percorremos longamente as ruas vizinhas e, já esgotados, fomos descansar os pés na Basílica de Santa Maria, a primeira igreja construída em Roma (pelo Papa Calisto III). Uma bela igreja situada numa bela praça, que é o coração do bairro. Na fachada estão fragmentos de lápides e duas «anunciações» do século XV.

Ali perto, pudemos visitar também uma bonita farmácia que data do século XVII, com vidros e paredes com deliciosas pinturas.

Por mais incrível que pareça, depois de um belíssimo jantar no Mario’s, voltámos a pé para o hotel, atravessando todo o centro para ver «Roma by night».


2º dia, Domingo 31


Depois de um longo percurso, sem rumo predefinido, fomos dar, sem querer, à famosa Piazza del Campidoglio, desenhada por Miguel Ângelo. O céu, coberto de nuvens cinzentas, deixava passar alguns raios de sol. A luz estava magnífica, «coada», como se alguém tivesse aplicado no céu um filtro polarizador destinado a fazer sobressair os pormenores da arquitectura e das esculturas. Em dias assim, a luz é uma verdadeira lupa.

Ao desembocar naquele local, vindo pelas traseiras, fiquei tão deslumbrado que me lembro de ter pensado: «Esta é, porventura, a mais bonita praça onde já alguma vez estive». Vivi ali um momento mágico, a olhar para aqueles edifícios perfeitos e para aquelas estátuas que emprestam ao local uma vibração muito especial. Para mais, mesmo no centro da praça do Capitólio está a estátua equestre de Marco Aurélio (é uma cópia, pois a verdadeira está protegida dentro de um dos palácios), um pensador que tanto admiro.

Li algures que a estátua só se salvou porque na Idade Média pensava-se que representava Constantino, o primeiro imperador que protegeu os cristãos. Se não fosse isso, teria sido derretida para fazer sinos, como aconteceu com tantas outras esculturas de bronze.

O largo quadrado está circundado por três palácios, abrigando dois museus que prometi a mim mesmo visitar noutro dia. O quarto lado tem uma balaustrada, de onde se pode ver parte da cidade. Dá para uma escadaria que desce até ao centro, mas não foi por aí que descemos. Circundámos a praça e fomos dar à parte de cima do alvíssimo Monumento a Victtorio Emanuele II, a que alguns romanos chamam, ternamente, «a máquina de escrever», por causa da sua forma muito particular.

Descendo para a Piazza Venezia, metemos pela rua dos foros imperiais onde se podem avistar todo o tipo de ruínas. São várias camadas de história que se oferecem aos nossos olhos, pelo que, enquanto caminhava ia pensando: «O tempo reduz tudo a cinzas e pó, só a monumentalidade assegura alguma longevidade. Os imperadores romanos, como os faraós do Egipto sabiam-no por certo». Contudo, nem mesmo os mais grandiosos monumentos da humanidade resistirão eternamente.

Pensando nos milhões de pessoas que tiveram que sofrer para construir estes e outros monumentos que, antes de mais nada, celebram a vaidade de alguns tiranos, enchi-me de tristeza. São, com efeito, necessárias muitas vidas sacrificadas para um instante de grandeza. Veio-me à cabeça um exemplo dos nossos dias: a maior torre do mundo que vi ser construída no Dubai, por milhares de operários indianos que trabalham em regime quase de escravatura.

À hora do almoço, caiu uma forte carga de água que nos impediu de continuar a passear. Aproveitámos para nos refugiar num restaurante onde comemos uma pizza deliciosa. Mais tarde, já com a barriga cheia, fomos visitar o Coliseu. Observando as ruínas, voltaram os pensamentos sombrios. Pareceu-me ouvir os gritos da multidão, o ruído das armas, os rugidos dos leões, a aflição dos escravos e dos presos. Imaginei o entusiasmo de uns e o terror dos outros. Mentalmente anotei: «Antigamente ia-se ao circo para ver morrer, hoje basta acender a televisão».

Ao pé do Coliseu, alguns indianos (estão por toda a parte, tal como os pedintes romenos) vendiam chapéus de chuva. Queriam vendê-los mesmo a quem vinha munido de um, como era o nosso caso. A quem traz um chapéu pequeno, propõem um grande. A quem traz um grande, propõem um pequeno. E são insistentes. Umas verdadeiras chagas.



No Aventino, um museu mínimo, deparei com meia-dúzia de esculturas, já meio destruídas, mas de eleição: metade de um rosto aqui, um corpo de mulher sem rosto ali, um vestido de pregas acolá e uma cara de menina mais além. Verdadeiros poemas de pedra, de artistas anónimos, que me comoveram.

À saída, tomei uma nota no meu caderninho: «Todos poderíamos ser génios nalguma coisa se a escola estivesse vocacionada para descobrir o melhor em cada um de nós. Se a escola não fosse uma fábrica de alienação».

No caminho para o hotel, a minha cabeça não parava. Pensava: «Bichos dotados de alguma inteligência, ardemos como agulhas inconsequentes». E depois: «O que seria uma humanidade que vivesse só para o bem? Que vivesse para criar e se proteger? Como seria o mundo se todos quiséssemos o bem de todos? Isso sim, seria magnífico: um mundo de gente simples e inteligente.»

Mais tarde

Terei de voltar a Roma, parece-me óbvio. Esta cidade não se esgota com uma visita. Aliás, isso não acontece com local nenhum. Com muitas poucas excepções, fico sempre com vontade de voltar aos locais que visito. Mas algumas cidades têm uma maneira muito própria de exigir uma nova visita. Daí as moedas na Fontana di Trevi, um ritual a que poucos escapam. Não deve haver ninguém que não queira regressar a Roma, acho eu.

Não coloquei a mão na Boca da Verdade, nem sequer a fotografei. No local, um letreiro exigia 50 cêntimos a cada turista para o fazer, especificando: «Uma foto por pessoa». Pensei: «Aqui, até as mentiras se pagam».

Mais tarde

Ao jantar (comemos num restaurante ao pé da estação de comboios), uma francesa come os dois jovens empregados com os olhos. Sorri-lhes o tempo todo e faz-lhes olhinhos. A Raquel comenta: «Aquela está com o cio». Eu respondo: «Também uma cidade pode despertar-te um desejo tão forte como o desejo sexual. Ao ponto de a queres possuir. Também eu sinto uma espécie de cio por Roma. Quero ver tudo, ir a todo o lado». A Raquel encolhe os ombros e suspira: «Depois, o corpo é que paga».

3º Dia, 1 de Fevereiro


Piazza Navone, Fontana di Trevi, Piazza de Espagna, Gueto… foi aproveitar o sol ao máximo.

No bairro judeu, comemos maravilhosamente. Primeiro uns bolos comprados numa pequena padaria, depois um esparguete com marisco de cair para o lado, numa tasca que nem sequer era recomendada pelos nossos guias (como sempre viajamos com um Guide du Routard, desta feita na tradução espanhola, e um Lonely Planet).

Na praça de Espanha, a Raquel comprou um par de luvas de cabedal (parece que cada dia que passa está mais frio que o anterior). Quanto a mim, comprei um livro de fotografias do Mario Giacomelli, um dos fotógrafos de que mais aprecio.

Às cinco da tarde já não podíamos andar mais. Metemo-nos num autocarro e viemos para o hotel, onde acabámos por adormecer, extenuados.

Quando chegou a hora de ir jantar, desabafei: «Só me apetecia ir descalço». A Raquel riu, percebendo muito bem o que eu estava a sentir. Temos ambos os pés inchados e doem-nos todos os músculos das pernas e das ancas.


4º dia, terça-feira


Jantar no Leoncino, uma pizzaria aconselhada pelo Trotamundos, a versão espanhola do Guide du Routard, que me foi oferecido no dia em que fiz 60 anos. De resto, o exemplar que tenho comigo está assinado por todos os amigos que foram a esse jantar e que me ofereceram cheques de viagem para que eu pudesse, finalmente, conhecer Roma.

O Leoncino (um restaurante que nunca mais vou esquecer) é frequentado quase exclusivamente por italianos. Do canto onde nos encontramos, vejo várias personagens que poderiam perfeitamente figurar num filme do Fellini. A meu lado, um casal de lésbicas, já meias bêbadas, interrompem de vez em quando a refeição para ir lá fora fumar um cigarro. Uma tem o rosto muito vermelho, a outra ostenta uma cabeça enorme. Ambas feias, têm ar de se amar loucamente.

Numa mesa à minha frente está uma falsa loira com lábios injectados com botox. Aquela boca enorme dá-lhe um ar tão lastimável que passo o tempo todo a evitar olhar para ela.

Noutra mesa, está uma versão caricatural do Larry David, um dos criadores do Seinfeld e do Curb Your Enthusiasm (duas séries televisivas) e actor principal do novo e divertidíssimo filme de Woody Allen, Whatever Works. Trata-se de um careca já sexagenário, com um resto de cabelo comprido na nuca. Tem óculos de aro grosso e um nariz enorme, tipicamente judeu.

O próprio empregado que nos serve, também ele sexagenário, é de antologia. Parece o deus Baco vestido com uma bata branca. O seu ar não engana: gosta mais da pinga do que da mãe. Barrigudo, tem um ar bonacheirão e cofia constantemente a barba e o cabelo grisalhos. Ri com frequência e é afável com toda a gente. Sem dúvida que lhe deixarei uma boa gorjeta, tanto mais que as pizzas são óptimas, com massas fininhas e ingredientes frescos.

O vinho da casa podia ser melhor, mas como vem fresquinho, escorrega com facilidade. Parecia muito e bebemo-lo todo.

***

Há anos que ouvia dizer que a Villa Borghese é um dos museus mais bonitos do mundo. Pois bem, é verdade.
Escondido nos jardins de Pincio, o palácio foi construído em 1613 pelo cardeal Scipion Borghese, que ali queria reunir a sua fabulosa colecção de arte. Actualmente, o número de visitantes está restringido a 360 de cada vez, pelo que convém reservar.
Já agora uma observação: apesar de todos os guias de viagem afirmarem que a melhor maneira para chegar ao museu é sair no Metro Flamínio, recomendo antes sair na Piazza de Spagna e seguir pelos corredores subterrâneos que indicam Villa Borghese.

Entre inúmeras maravilhas (possui obras de Rubens, Ticiano, Dürer, etc), as que mais me marcaram foram duas esculturas de Bernini («O rapto de Proserpina» e «Apolo e Dafne») e dois quadros de Caravaggio («David e Golias» e «A Madona com a Serpente»).

Já tinha visto reproduções do «David e Golias», mas ao vivo o quadro tem a força de um murro no estômago. Um jovem David segura pelos cabelos a cabeça degolada de Golias, que tem os olhos e a boca horrivelmente abertos. Na verdade, este Golias é o próprio Michelangelo Merisi (Caravaggio era o nome da sua aldeia natal, que ele adoptou como nome artístico), que viria a falecer pouco tempo depois em circunstâncias nunca completamente esclarecidas (faleceu a 18 de Julho de 1610, aos 37 anos).

Com este quadro, pintado propositadamente para oferecer ao Papa, o pintor queria fazer-se perdoar um crime hediondo a fim de regressar finalmente à Pátria. O facto de se ter colocado no lugar do morto é visto como um sinal do seu arrependimento.

Gostei ainda mais d’«A Madona com a Serpente» onde vemos a Virgem segurar no menino (já quase adolescente) sob o olhar atento de uma outra mulher. Jesus está nu e pisa o pé da mãe que por sua vez pisa uma cobra que se contorce sob a pressão. O simbolismo é evidente, mas a mistura de ingenuidade angelical que se desprende das duas figuras santas contrasta com a forte carga erótica representada pelo contacto dos pés, o decote da virgem e a pilinha bem em evidência do seu filho.

Sabemos que aos olhos de Caravaggio, Maria representava «a» mulher e que para representar a Virgem Maria escolhia geralmente meretrizes, como no quadro que acabo de descrever. Caravaggio era de resto um «rufia», conhecido por procurar brigas, frequentar o submundo e andar com armas proibidas por lei. Como se sabe, esteve preso por diversas vezes e viria a assassinar um homem (no dia 29 de Maio de 1606), pelo que teve de fugir de Itália e viver exilado até ao fim dos seus dias.

À tarde, visitámos os Museus Capitolinos (Palácio dos Conservadores e Palácio Novo). No primeiro, estão mais dois belíssimos quadros de Caravaggio, um representando uma cigana que lê a sina a um jovem fidalgo, o outro, São João Baptista. Ou seja, esta noite vou adormecer novamente com os olhos cheios de coisas belas.

(Àparte: nos museus romanos, os cidadãos europeus com mais de 65 anos, ou menos de 18, não pagam.)

Num jornal que li hoje no metro, o escritor francês Daniel Pennac opina: «O homem constrói porque está vivo, mas escreve livros porque se sabe mortal. Vive em grupo porque é gregário, mas lê porque se sente só».

No mesmo jornal, uma notícia afirma que, no final de 2009, havia qualquer coisa como 212 milhões de desempregados no mundo. Tristemente, eu sou um deles.


5º Dia, quarta-feira


A Raquel acordou doente. Doe-lhe a cabeça, está mal disposta e parece febril. Não quis levantar-se, nem para tomar o pequeno-almoço. Recusa-se também a ir ao hospital. «Deixa-me dormir», suplica, para logo acrescentar: «Vai tu à Central Montemartini».

Fui.

A Central é uma extensão dos Museus Capitolinos instalada numa antiga fábrica na margem sul do Tibre. Ali, uma bela colecção de escultura da antiguidade clássica está misturada com maquinaria que data do princípio do século XX.

O espólio da Central Montemartini inclui várias estátuas que ornavam o frontespício do Templo de Apolo Sossiano, por exemplo.



Algumas das esculturas estão muito «comidas pelo tempo». Ou sejam, começaram há muito a desaparecer. Perante estes rostos a que faltam já o nariz, a boca e, nalguns casos, até os olhos, surpreendi-me a pensar nos homens que representam. Queriam que o seu retrato perdurasse, mas não ficará cá memória de ninguém, nem dos imperadores, nem dos filósofos ou simples anónimos. «Tout doit disparaître», como dizem os cartazes de algumas lojas francesas. O tempo tudo devora, como muito bem lembra um poema de Séneca que não resisto a transcrever (numa tradução um bocado atabalhoada do francês):

Insaciável, o tempo tudo devora e colhe,
Tudo destrói mão poupando nada.
O rio seca, a praia também,
A montanha treme e o cume rui.
Que imposta tudo isto? O próprio céu
Se incendiará por completo subitamente.
A morte tudo aspira: é uma lei, não vale a pena chorar.
Um dia, o mundo deixará de existir.


Outras estátuas comovem-nos pela delicadeza das feições, das poses, ou de um detalhe pitoresco. Notáveis as estátuas de jovens efebos, com nádegas e pernas de mulher, mas enfeitados com atributos bem masculinos. A atracção pela androginia e a ambiguidade sexual já vem de longe.

À tarde, vista ao Museu Nacional Romano. Mais estátuas, algumas magníficas e muitas moedas. O que mais me encantou foram os frescos, os murais funerários e as pinturas de jardim que enfeitavam as moradias romanas.

Lindas as figuras femininas e também os animais, que fotografei sem vergonha. Como gostaria de dormir entre paredes pintadas por estes artistas!

Numa outra sala, vi uma reconstituição virtual de uma vivenda romana que me deixou estupefacto. Aquilo sim, era luxo. Os filhos da mãe sabiam viver. Quase constantemente mergulhados em guerras e intrigas palacianas que lhes podiam custar a vida a todo o momento, gozavam a vida ao máximo, não se poupando nenhum prazer. Comiam bem, bebiam melhor, fornicavam que nem coelhos e rodeavam-se de coisas belas. De uma coisa não os podemos acusar: de falta de sentido estético.

(Àparte: às bocas de incêndio, os italianos chamam idratante.)

***

Num jornal gratuito, que apanhei no Metro, leio: «Os italianos são um povo de bloggers». Segundo a notícia, mais de um milhão de italianos mantém um blogue. 2, 3 milhões lêem-nos e há mesmo quase 700 mil internautas que afirmam informar-se exclusivamente nos blogues. Os dois temas mais procurados neste país são o desporto e a actualidade.

Dos apontamentos que tomei ao longo do dia, destaco este: «Viajar é a minha maneira de viver poeticamente cada minuto que passa.» E já agora mais um: «De tudo o que vi e ouvi no mundo, o que retive de essencial fui sempre eu. Eu sou o meu futuro. O mundo é o meu caminho: o rio que me há-de levar até ao fim.»

Quando cheguei ao quarto, a Raquel acordou. Apeteceu-me dizer-lhe: «A minha casa é onde tu estás.»


6º Dia


A Raquel sente-se melhor, por isso, decidiu ir comigo ao Vaticano.

Na Basílica, logo à entrada, está a famosa «Pietá». Protegida por um vidro desde que foi vandalizada, apenas se pode ver ao longe. Com tanta gente a tirar-lhe fotografias, nem dá para ver bem. Para além da monumentalidade, a basílica é realmente bonita. Gostei do púlpito e do baldaquino de Bernini, extremamente original. Diz a Wikipédia: «Trata-se de um alto baldaquino de bronze dourado, de quase 30 metros de altura, construído de 1624 a 1633. De plintos em mármore, que mostram o escudo de armas do papa, erguem-se quatro colunas torcidas que suportam o peso do baldaquino com um globo e uma cruz. O desenho é exuberante, cheio da energia e movimento próprios ao Barroco, a solução ideal para o imenso espaço aberto no interior pelo domo central. Para obter bronze suficiente o papa ordenou derreter bronzes antigos do Panteão, fazendo com isso o povo de Roma dizer: «O que os bárbaros não conseguiram fazer, fizeram os Barberini...»



Dentro do Vaticano, se incluirmos os vários museus, anda-se quilómetros. Nem tudo é digno de atenção, mas só a visita das Estâncias de Rafael e da celebérrima Capela Sixtina já merece os 14 euros que se pagam de entrada.

As capelas pintadas por Rafael são magníficas. Gostei em particular da que representa o famoso «Incêndio do Borgo». Quanto à Capela Sixtina (ou Sistina) merece toda a sua reputação. Poderíamos ficar horas a admirar tanto o tecto como a parede do altar, que representa o Juízo Final. Estou, contudo, demasiado cansado para escrever sobre o que senti naquele local esmagador.

(Àparte: a famosa guarda suiça do Vaticano existe desde o século XVI. O pitoresco traje que ainda hoje usam foi desenhado por Miguel Ângelo).

A meio da noite

Acabo de ter um dos mais belos sonhos da minha vida. Não me lembro das circunstâncias, mas de repente desatava a cantar e não conseguia mais parar. As palavras jorravam da minha boca sob a forma de canto, como a água da fonte. Sem parar. O meu canto transportava-me cada vez mais alto. Tudo o que eu dizia rimava e era lindo. E a Raquel amava-me cada vez mais por causa disso. Em casa, o pó ia-se acumulando mas nós não nos ralávamos com isso.

A certa altura, o sonho tornou-se tão intenso que acordei sobressaltado.

Na minha cabeça, martelava uma história. Ou melhor, um esboço de história. Os apontamentos que tirei (na casa de banho, para não acordar a Raquel), dizem assim:

«Era uma vez um país onde os espelhos nunca chegaram a ser inventados. Por isso, as mulheres quando se queriam pôr bonitas tinham que se desenhar em cadernos. Assim, quando morriam, os filhos podiam vê-las não como se lembravam delas, mas como elas eram realmente.

Os homens não desenhavam. Faziam a barba uns aos outros e, por isso, nunca se matavam».


7º Dia, sexta-feira


Estou tão obcecado pelo Caravaggio que hoje decidi dedicar-lhe o dia. Logo de manhã fui à galeria Doria Pamphilj, um belíssimo palácio mesmo no centro da cidade com uma colecção fabulosa de obras de arte. Pieter Brueghel, Durer, Ticiano, El Greco, Tintoreto… estão lá muitos quadros admiráveis, mas o que eu queria ver sobretudo eram os dois Caravaggios: «Descanso na fuga para o Egipto» e «Madalena penitente». As duas obras estão lado a lado e salta à vista que, em ambas, a mulher é a mesma. Até a posição do rosto e expressão são idênticas. Consta que o modelo terá sido uma prostituta. De resto, naquele tempo, o pintor usava quase sempre gente do submundo para os seus quadros.

O «Descanso na fuga para o Egipto» é uma obra de juventude. É mais luminoso e alegre que as obras posteriores, mas já tem pormenores geniais. O modo como José descansa os pés, um em cima do outro, por exemplo, e a nudez do anjo que está de costas para nós, tocando violino de olhos fechados. Também Maria e o menino parecem ter os olhos fechados, sem dúvida para apreciar melhor a música, como eu costumo fazer.

Para além de José, só o burro tem os olhos abertos. Está lá atrás, meio escondido, como um mirone, talvez perguntando a si próprio porque será que a sua voz nunca chegará ao céu.

A segunda etapa do meu percurso Caravaggio levou-nos à Igreja S. Luiz dos Franceses que ontem, por ser quinta-feira, estava fechada. Aí esperavam-me três novas pinturas do mestre do «claro-escuro» (como alguns lhe chamam), que evocam três fases da vida de São Mateus. Ornam as paredes de uma capela e só se podem ver ao longe, em más condições. Gostei especialmente do quadro intitulado «A Vocação de S. Mateus», onde Jesus Cristo irrompe na sala onde se encontra o cobrador de impostos. A luz que ilumina os diversos rostos, e muito em particular a um jovem que tem um chapéu com uma pluma na cabeça, empresta à cena um encanto indescritível. Neste, como noutros quadros, Caravaggio comporta-se como um fotógrafo de cena que fosse simultaneamente um encenador genial, pelo modo como dispõe as personagens no quadro e as expressões que lhes coloca no rosto, para já não falar do modo como os ilumina.

A terceira vista foi ao Palácio Barberini onde está o quadro que mais queria ver: «Judite e Holofernes».



Diz a história que a bela Judite seduziu um general inimigo, cujas tropas cercavam a cidade onde vivia, organizando um banquete em sua honra. Quando ele adormeceu, já bêbado, ela degolou-o com a ajuda de uma criada e expôs a sua cabeça nas muralhas da cidade, para que o exército inimigo debandasse.

Este episódio sangrento inspirou muitos artistas, e dado o gosto de Caravaggio pela violência, o tema só podia inspirá-lo. A obra tem uma força estonteante. Dificilmente esquecerei a espada atravessada no pescoço daquele homem barbudo, cujo grito mudo consigo ouvir só de o imaginar. Qualquer dos três rostos em cena é brutal: o da vítima, entre o espanto e a agonia, o da criada carregado de ódio e, sobretudo, o de Judite com um olhar onde se mesclam a determinação e o nojo, mas também (será impressão minha?) um quase imperceptível prazer sádico. Direi mesmo que, pelo menos aos meus olhos, este é de todos as obras de Caravaggio que conheço, a mais poderosamente sexualizada.

A seu lado, o «Narciso», outra das suas obras mais emblemática, quase passa despercebida.
O Narciso de Caravaggio não parece apaixonado por si próprio. Vejo nele apenas um adolescente meditativo. Imagino-o a perguntar-se: «Quem é este que vejo? eu? Mas quem sou eu?».
Por mim, respondo: a nossa imagem está sempre a mudar. Como poderíamos nós reconhecer-nos, num espelho ou numa fotografia? O rosto que vi de manh enquanto fazia a barba, não eraexactamente o mesmo que na véspera.
Se olho para fotografias antigas, sou obrigadoa a concluir: «Todas estas imagens mentem, eu não estou verdadeiramente em nenhuma. Mais: nunca estive. Se fui aquele gajo, nem dei por isso».
Na verdade, não tenho uma imagem a que chame minha. Por vezes, penso que a minha imagem está espalhada aos quatro ventos e que cada pessoa que cruzo na rua conhece-a melhor do que eu.


Sábado, dia de regresso

Antes de regressar a Lisboa, ainda tivemos tempo de ir a um mercado e visitar as Termas de Caracalla, que se revelaram uma grande decepção.
As ruínas deixam perceber a sua antiga grandiosidade, é verdade, mas só restam parcos vestígios dos mosaicos que cobriam o chão e algumas paredes. Tudo o resto desapareceu.
Vale no entanto a pena lembrar que as termas (construídas entre 212 e 216 a.C.) eram um vastíssimo conjunto de piscinas e ginásios, abertos durante 24 horas e empregando centenas de escravos. Podia receber até 1600 pessoas em simultâneo e, por tuta e meia, qualquer romano tinha acesso a banhos turcos, piscinas de água quente e fria, massagens e tratamentos de beleza.
Nos ginásios praticavam-se vários desportos, como a luta e a esgrima. Os intelectuais preferiam frequentar o auditório, a biblioteca e apreciar as muitas obras de arte que ali se encontravam.

As Termas de Caracalla encerraram em 537 d.C., quando se romperam os aquedutos, que tinham 91 quilómetros de extensão com uma capacidade para 80 mil litros de água.

 

No avião de regresso, escrevi no meu caderninho: «Escrever, viajar, fotografar: tudo isto remete para a mesma pulsão. Uma pulsão de vida (PARAR É MORRER)». E lembrei-me de uma frase do filósofo Michel Onfray que reza assim: «Dans le voyage, on découvre seulement ce dont on est porteur».

sexta-feira, 7 de agosto de 2009

Caderno canadiano

1º dia (18 de Junho, quinta-feira)

Chegou o dia e já estou no avião. A minha alma parece mais pura que ontem, talvez por estar aberta à aventura. Com a Raquel passa-se provavelmente o mesmo: estamos ambos a fazer uma das coisas que mais gostamos na vida: viajar. Na verdade, estávamos à espera deste momento, desde que viemos do México.
Por mim, diria que cada viagem que faço dá início, por assim dizer, a uma nova etapa na minha vida.
Segundo Thoreau, um rei chinês tinha escrito na sua banheira: «Renovai-vos completamente em cada dia». Em verdade vos digo: é mais fácil fazê-lo quando estamos longe de casa.
Em «Walden», um livro de que tanto gosto, Thoreau lembra ainda, e muito bem, que «o trajecto está preparado para nós, quer viajemos depressa ou devagar». Se alguma coisa aprendi com todas as viagens que fiz é que, com efeito, não vale a pena querer ver tudo, ou ir a todo o lado. Andemos depressa ou devagar, cada viagem traz sempre, de qualquer modo, o seu quinhão de descobertas, desilusões, maravilhas, fotografias e recordações. O viajante não deve ter mais olhos do que barriga, pois por cada coisa que perdemos, ganhamos outra. Tudo está em tudo e o essencial está por toda a parte. A toda a hora.
De mãos vazias o digo.

No momento de embarcar para o avião, na Portela, ocorreu-me uma frase de Peter Handke que li recentemente («À Ma Fenêtre Le Matin»): «Mon être-lá est de plus en plus un être lá-bas: je suis emporté vers le lieu où je ne suis pas»).

Mais tarde

Por muito que goste de viajar e de aviões, estar sentado tantas horas num espaço tão exíguo é uma tortura. O meu rabo fala por mim. E as costas confirmam-no.
A meu lado, a Raquel tem frio. Em contrapartida, estou cheio de calor. Só tenho uma t-shirt vestida e estou a transpirar. Muito perto de nós, uma rapariga tem o blusão vestido e está toda encolhida, enquanto o seu namorado está de t-shirt como eu. A cada um a sua temperatura?
Antes do almoço, vi um documentário sobre a «Route 66» (um velho projecto nosso). A reportagem consistia essencialmente numa colecção de entrevistas realizadas ao longo da estrada, penso que por dois franceses. No minúsculo ecrã do avião, desfilaram donos de cafés, lojistas, almas solitárias. Gente de idade avançada na sua maior parte, com histórias dos bons velhos tempos para contar.
Pelo que percebi, a Route 66 já quase não existe. É mais uma lenda que se desfaz.
Há troços da estrada que já não são transitáveis e a sensação de decadência está por todo o lado. O filme deixa a ideia de que a América profunda é uma América esquecida. Envelhecida. Meio abandonada. Já a paisagem ainda é grandiosa. Sobreviverá sem dúvida aos homens que tanto mal lhe têm feito. Tudo indica, porém, que ela própria desaparecerá um dia. É o preço da eternidade.
Numa conversa com o Daniel, ontem à noite, enquanto comíamos uns caracóis numa esplanada de Campolide, a certa altura tive que lhe dizer: «Envelhecer é ir perdendo as certezas. Aos 20 anos sabemos tudo, aos 30 surgem as primeiras dúvidas e aos 60 já não temos a certeza de nada».
Mal tive tempo de acabar a conversa. Tivemos que ir a correr para casa, porque ia passar na televisão a reportagem da Ana Romeu sobre o «Testamento Vital».

Em Amesterdão, como combinado, a Joana veio ter connosco ao aeroporto. Trouxe o Samuel que vi assim, pela primeira vez, andar pelo seu pé. Ele não me reconheceu e tive alguma dificuldade em fazer-me aceitar. Está muito giro, mas muito irrequieto. O tempo passou a correr, outro avião esperava por nós.

Muitas horas depois

Em Vancouver, deparámos com um quarto horrível, num hotel a sul do centro, não muito longe da Ilha Granville. Feio e claustrofóbico, o tegúrio tinha um sofá-cama verde mal parido, com duas partes separadas por uma cova incómoda. Ainda por cima, uma das «metades» da cama era mais estreita do que a outra.
Apesar de exíguo, o quarto incluía num canto uma espécie de cozinha ridícula, também ela mal concebida, com armários até ao tecto e um frigorífico barulhento. Enfim, um verdadeiro pesadelo, até no preço. O mínimo que se pode dizer é que a relação qualidade-preço era péssima.
(A família Maio teve mais sorte. Teve direito a uma cama verdadeira.)
Antes de jantar, fomos dar um passeio pelas redondezas. Acabámos por comer numa espécie de rodízio de carnes grelhadas, numa atmosfera de saloon para cowboys, frequentada sobretudo por asiáticos. Há, de resto, asiáticos por todo o lado. No autocarro que apanhámos para o hotel, quase toda a gente tinha os olhos em bico.
Já tinha lido algures que hoje em dia a maioria dos emigrantes do Canadá vêm da Ásia. Não levei muito tempo a perceber de que assim é de facto.

Sexta, 19. Vancouver



Apesar dos chuviscos frequentes, passámos o dia a deambular «downtown», depois de uma passagem pela estação de comboios para comprar os bilhetes para Toronto, já que os nossos guias aconselhavam a fazê-lo com antecedência. Comprados alguns dias antes, os bilhetes ficam mais baratos.



Do que vi da cidade até agora, gostei especialmente de Yaletown e da Grandville na zona dos teatros (parte da rua está em obras, o que acentuava o seu carácter cinematográfico). Um dos cartazes que vi anunciava a vinda próxima de Neko Case, uma cantora americana de que gosto muito. Mais um concerto a que não vou poder assistir, com grande pena minha. Resta-me uma consolação: trago por acaso no ipod o seu último álbum (intitulado «Middle Cyclone»). Ainda não o ouvi, mas não perde pela demora.



Almoçámos num bistrot e jantámos sushi.
O filho do Luís Maio é doido por sushi, especialmente de salmão. Parece ser a sua comida preferida.

Sábado, 20. Vancouver

Antes de virmos, vi um programa na televisão onde se assegurava que Vancouver é, de todas as cidades do mundo, aquela que tem o melhor nível de vida. Passeando pelas ruas do centro, não custa nada acreditar em tal afirmação. Muito cosmopolita, a cidade propõe uma arquitectura globalmente simpática, onde coexistem harmoniosamente arranha-céus modernos e vivendas de madeira. Não se sente stress aqui.
Ao contrário do que sucede em Lisboa, os jornais locais não falam praticamente, nem da crise nem da gripe A.



Passámos a manhã em Granville Island, onde as docas deram lugar a ateliers de artes plásticas e escolas de todo o género. Ali se encontram vários mercados simpáticos (há um kid’s market, um public market e um marine market, por exemplo), restaurantes e cafés, várias galerias de arte, teatros e casas lacustres que muito invejámos. A ilha é um paraíso para as crianças, com vários parques e actividades que lhes estão destinadas. Vi um atelier de teatro cheio de crianças e, noutro local, mais crianças a pintar ou a desenhar em grupo. Aqui até dá vontade de ser pai.
Na Charles H. Scott Gallery, uma das muitas galerias por onde passámos, vimos uma interessante exposição de fotografias de arquitectura de Selwyn Pullan, intitulada «Positioning the New». Constituída por fotografias tiradas entre 1945 e 1975, a mostra foi pretexto para uma discussão (amigável) com o Luís Maio, pois ambos saímos com ideias muito diferentes acerca do trabalho do fotógrafo.

Ao almoço, partilhei sem querer um hambúrguer de salmão com uma gaivota traiçoeira. Surgiu-me pelas costas e arrancou-me um pedaço da sandes, felizmente sem me tocar. Primeiro fiquei furioso, depois desatei a rir, tanto mais que não é a primeira vez que tal me acontece. Uma vez, estava eu na Cidade do Cabo, à espera do teleférico para me levar à Table Mountain, veio um passarão enorme que me levou a sandes que me preparava para comer.



Da ilha partem ferrys e aquataxis que percorrem o false creek (falso rio) em todas as direcções. Por isso, decidimos ir de barco até à zona do Space Center onde estava a decorrer um «dragon boat festival». A certa altura, o nosso barquito ficou sem bateria e a rapariga que o conduzia (uma loura de compleição atlética) teve que remar e pedir ajuda pelo telemóvel. O Luís tirou-lhe uma foto quando ela estava a remar e a moça não gostou nada. Ralhou com ele, disse que era muito mal-educado por tirar fotos sem pedir autorização.

Mais tarde fomos à feira da ladra, onde comprei uma máquina fotográfica antiga (uma Brownie Kodak) para a minha colecção. O Luís ofereceu-me um livro de fotografias que eu hesitava em comprar, mais por causa do peso do que por causa do preço (10 dólares): «The Russian Heart: Days of Crisis & Hope», de David C. Turnley.

Ao fim do dia, passeio pelo West End e pelas praias, antes de jantarmos, numa brasserie, mexilhão e batatas fritas.

Domingo, 21. Ilha de Vancouver



Tivemos que acordar bem cedo, para apanhar a camioneta para a Ilha de Vancouver. A viagem de barco é fantástica. A paisagem é maravilhosa, com o mar salpicado de ilhas cobertas por florestas e a luz estava fabulosa, dando ao mar e ao céu cores deslumbrantes. Quem tem máquina não consegue parar de tirar fotografias.
Em Victoria, fomos para o Elm’s Inn, um hotel que vinha muito aconselhado nos nossos guias. O quarto era efectivamente fantástico, muito espaçoso, com uma cama king-size e uma boa casa de banho.



Pouco depois, alugámos um carro na Budget e fomos passear pela costa. A ilha de Vancouver tem sensivelmente o tamanho da Holanda, por isso estava fora de questão irmos a todo o lado em tão pouco tempo. Limitámo-nos, por isso, a visitar duas praias, a French beach e a Botanical beach.
Encontram-se na Ilha de Vancouver muitas árvores com 400 ou mesmo 500 anos. Algumas já existiam quando a Europa estava a sair da Idade Média. É impressionante pensar nisso, enquanto se percorrem os trilhos abertos à beira-mar.
Antes de adormecer, ainda li no «Epoch Times» (um jornal que panhara durante o dia) um inquietante artigo sobre os perigos da nanotecnologia e outro, igualmente muito interessante, sobre os problemas actuais dos aborígenes canadianos, cuja população não pára de crescer. Segundo o jornal, os índios actuais continuam com problemas de adaptação, virando-se frequentemente para o álcool e a delinquência.

Segunda, 22. Victoria

De manhã, passeio de carro até um parque que mal vimos porque o Luís e a Ana quiseram vir-se embora. Queriam visitar os jardins, mas não demos com o sítio. Meio zangados uns com os outros, em Victoria, separámo-nos.
A Raquel e eu deambulámos pelas ruas, sempre tirando fotografias e almoçámos num restaurante simpático chamado Il Paglici, onde os pratos tinham nomes engraçados: «Spaghetti western», por exemplo, ou «Marinade in Manhattan». Havia ainda um «Dish with no name», um «Hemingway short story» e uma «Jane’s addiction».
À tarde, fomos visitar o museu local porque a Raquel tinha curiosidade em ver os quadros de Emily Carr, a pintora mais famosa do Canadá que nasceu em Victoria (1871). Muita da sua pintura pareceu-me influenciada pelos impressionistas franceses, mas estavam patentes outras fases da sua obra mais interessantes. Não fiquei, contudo, especialmente impressionado pelos seus quadros.
No museu estavam outras exposições. Nomeadamente uma de arte japonesa («Edo: arts of Japan’s last Shogun age») e outra intitulada «The Great Landscape» com obras de vários artistas da Columbia Britânica. A exposição que preferi intitulava-se «O Mundo de Pernas Para o Ar» («World Upside Down»), e era composta por obras que não conhecia mas também exemplos retirados do cinema, da banda desenhada, e da literatura.
Na loja do museu comprei uma «reciclagem»; um velho garfo que alguém transformou num improvável insecto de prata. Adorável.
De regresso ao centro, numa loja, onde a Raquel entrou para ver sapatos, ouvi uma cliente queixar-se à empregada: «O sapato aleija-me um pouco o pé. Que pena, gosto tanto deles. Deus não quer que eu compre um par de sapatos hoje». Ao que a vendedora respondeu, para meu grande espanto: «Deixe estar minha senhora, vai ver que amanhã encontra os sapatos perfeitos para si.»
A simpatia dos canadianos continua a surpreender-me!

Terça, 23. Vancouver

Inaugurado em 1889, o Stanley Park é o pulmão da cidade de Vancouver e uma das suas principais atracções. Com os seus 400 hectares, é (como eles dizem) «uma das maiores ilhas de verdura urbana da América do Norte. Situado numa quase-ilha, o parque tem 400 hectares e alberga cortes de ténis, campos de golfe, piscinas, campos de jogos, um comboio em miniatura, um anfiteatro e um aquário.
Para o percorrer, alugámos bicicletas. Começámos por dar a volta toda ao parque (num total de quase nove quilómetros) e acabamos por ir visitar o aquário, que adorámos. Ficámos com uma óptima ideia da biodiversidade do mar nesta zona do globo e deixámo-nos encantar especialmente pelas anémonas. Na parte exterior do Aquário há leões-marinhos, focas, golfinhos e pequenas baleias brancas. Lá dentro estão, para além dos peixes e outros seres marinhos, papagaios, macacos, serpentes, crocodilos e sei lá que mais. No final, felicitei-me por ter visitado o local, que achei no entanto um tanto assustador. O fundo do mar e os seus seres sempre me meteram medo. Lembro-me mesmo da primeira ver que fui ao Aquário Vasco da Gama: nessa noite quase não consegui dormir.



Algures no parque, pode ler-se numa placa: «para o uso e prazer das pessoas de todas as cores, credos e costumes». É o que mais gosto em Vancouver: esta ideia de que a cidade pertence a todos. Infelizmente, não é essa a sensação que tenho em Lisboa.

Quarta, 24. Comboio. Jasper.

Noite no comboio. Como as couchettes são demasiado caras, não tivemos outro remédio senão procurar dormir sentados, como no avião. Passei a noite às voltas, sem conseguir dormir. Tinha dores nas coxas e nas costas e não conseguia deixar de ouvir a buzina do comboio, que não se calava.



Quando acordei, ou melhor, quando decidi que já não valia a pena procurar o sono, olhei pela janela e percebi que estava no Faroeste. Vi vaquinhas à solta na estrada, cavalos na pradaria e gente a viver em caravanas ou em cabanas de madeira, com carrinhas de caixa aberta à porta, tal e qual como nos filmes.
Mais tarde, entrámos nas montanhas e a paisagem mudou. Fiquei com a cabeça cheia do verde da floresta e dos rios. Na carruagem panorâmica, enquanto deixava que toda a minha mente se impregnasse do que via, ouvia o novo disco de Neko Case e aquela música fazia todo o sentido naquele cenário deslumbrante.



São quatro noites de Vancouver a Toronto de comboio. As couchettes são a um preço proibitivo (pelo menos para mim), pelo que tivemos que dormir sentados. Não é muito confortável, nem há a possibilidade de tomar duche (em económica), mas a paisagem que vai desfilando pelas janelas vale todos os sacrifícios. Há, de resto, carruagens panorâmicas, com o tecto envidraçado, para se ver melhor. As refeições a bordo também são bastante boas e relativamente baratas (12 dólares). Na zona do bar, há filmes e concertos, de vez em quando.
Para os ricos, há um outro comboio que liga Vancouver a Jasper, atravessando as Rochosas. Chama-se precisamente Rocky Mountanaieer e só circula entre Maio e Outubro. Como este comboio especial só viaja de dia, para não se perder nada do espectáculo oferecido pelas montanhas (picos de neve, cascatas, canyons, glaciares, florestas a perder de vista, ursos á solta, etc), a viagem inclui uma noite de hotel em Kamloops.
Em Jasper, acabámos no Jasper Inn, um hotel com piscina e jacuzzi, que mal aproveitámos.

Quinta, 25. Rocky Mountains

O Parque nacional de Jasper é, segundo os guias turísticos, «um dos locais mais notáveis do Canadá». Os guias prometem «vales a perder de vista, cadeias de montanhas acidentadas e lagos puros e cintilantes», para além de glaciares, como o Columbia Icefield.
À saída de Jasper, depois de pagar uma portagem (para andar dentro do parque tem que se pagar um bilhete diário), a primeira etapa foram as Athabasca Falls, umas cascatas impressionantes, rodeadas de montanhas deslumbrantes, com florestas a perder de vista. Mais adiante, novas cascatas ( Sunwapta falls) e mais um bom punhado de fotografias.
A própria estrada é um espectáculo, acho que nunca percorri nenhuma com tanta emoção. Se bem que a primeira vez que atravessei o Atlas em Marrocos, o meu coração deu muitos pulos! Enquanto avançávamos em direcção a Banff, pensava: «Na cidade, fazemos parte do espectáculo. Na montanha, não. O espectáculo está todo fora de nós. Aqui, verdadeiramente, as árvores escondem a floresta».
Aos meus olhos, cada árvore é uma pessoa. São todas tão diferentes umas das outras. Algumas fascinam-me mais do que outras.
Penso em tudo o que a floresta nos esconde e digo para mim próprio: «Não vemos quase nada». Depois, penso: «Ver é sentir e sentir é uma maneira profunda de pensar». Gostaria de pensar como uma montanha.
Mais adiante, depois de um piquenique na estrada, chegámos ao Columbia Icefield, que visitámos naqueles autocarros enormes, iguais aos que circulam na Antártica.



Durante a visita, fiquei a saber que o território que hoje ocupa o Canadá conheceu quatro épocas glaciares. Os glaciares de Athabasca e Columbia faziam outrora parte de um tapete glaciar que corroeu e esculpiu o relevo que hoje vemos nas Rochosas. A certa altura, o glaciar Athabasca cobria um vastíssimo território que ia do Norte até às planícies, para lá mesmo de Calgary. A mais recente época glaciar terminou há apenas 10 mil anos. A maior parte dos glaciares da América do norte está ainda a recuar, pois cada Verão derrete mais neve do que a que cai.
Quando a neve que cai atinge uma profundidade de cerca de 30 metros, as camadas inferiores comprimem-se e transformam-se em gelo. À medida que a neve se vai acumulando, a espessura do gelo aumenta e espalha-se.
Os visitantes não vêem senão uma pequena parte do Glaciar, que continua a mover-se imperceptivelmente, pois o gelo das camadas mais fundas, sob a pressão enorme, torna-se «elástica». As camadas superiores são mais quebradiças e formam, por isso, fendas.



Ao deslocar-se, o glaciar arrasta tudo o que encontra pelo caminho, rachando as próprias rochas e formando as «moraines».
O Columbia Icefield, que ocupa 325 metros quadrados, para além de fornecer água em quantidade, refresca a temperatura, tornando os invernos ainda mais rigorosos.
Chegámos a Lake Louise ao final do dia. A Ana Loureiro não quis ficar num Hostel (nossa escolha), porque não tinha quarto de banho privativo, e tivemos que ir para um hotel caro. O problema nas Rochosas, tal como avisava o Guide du Routard, é que em termos de hotéis só se arranja ou chunga ou chique, não há cá meios termos.
Mal acendemos a televisão do quarto do hotel, tivemos a notícia de que morreu o Michael Jackson. Levou-o uma paragem cardíaca aos 50 anos.
Ao jantar, nova discussão com o Luis maio e a Ana. Decidi, por isso, que seria melhor separarmo-nos em dois grupos.

Sexta, 26. Jasper

De regresso a Jasper, usámos a carrinha Nissan para ir ao Lake Maligne. De caminho, visitámos o Maligne Canyon e o Medecine Lake, o lago que desaparece. Na estrada, em vários locais, podemos fotografar de perto vários caribus que passeavam na floresta.



O Maligne Lake é o maior lago das Rochosas canadianas e um dos mais fotografados. Tem mais de 27 quilómetros de extensão e foi um jesuíta belga que o baptizou com esse nome, em 1846. 60 anos mais tarde, a exploradora Mary Schaffer (a primeira mulher a visitar o local) considerou-o uma das paisagens mais espectaculares das Rochosas. Não sei se não é mesmo.



Os índios chamavam a Marie Schaffer «Yahe-Weha», que quer dizer «mulher das montanhas». Filha de uma família rica da Pensilvânia, ela casou com um botanista aos 19 anos. Ficou viúva os 30 anos, mas continuou a explorar as Rochosas, com a ajuda de um guia chamado Billy Warren, com quem ela viria a casar mais tarde.
Todos os anos, 7500 quilómetros cubos de água caem sobre esta região, sob a forma de chuva ou de neve. A sua força de erosão é tremenda e o vale do rio Maligne tornou-se profundo e estrito, ganhando a forma de um V.
Não longe do lago podem observar-se os canyons que assim se formaram.
Perto dali está o lago Medicine, que tem a particularidade de desaparecer durante alguns meses. Esse fenómeno assustava os índios e intriga ainda hoje os cientistas. Calcula-se que, quando o lago desaparece, a água do rio continue a sua marcha para o Ártico através de subterrâneos e cavernas cavadas no calcário, pois o rio reaparece perto do Canyon Maligne, a 16 quilómetros dali. Curiosamente, a água leva cerca de 16 horas a percorrer esses 16 quilómetros.



Já em 1956, um professor francês reconheceu a existência de um rio subterrâneo, mas até hoje ninguém conseguiu localizá-lo exactamente.
Quanto às montanhas que rodeiam o lago, continuam também elas a evoluir. A erosão está a esculpi-las lentamente. Nem as montanhas escapam ao envelhecimento.
A rocha mais antiga que se encontrou no local contém fósseis de conchas com mais de 600 milhões de anos!
Em Jasper resolvemos ficar numa casa particular. A proprietária, com um bebé ao colo fez-nos visitar o quarto e a casa de banho. Depois, de muita conversa, muito simpática, decidiu fazer-nos um desconto, sem que lhe pedíssemos nada.
Às 17h fomos entregar a carrinha. Confusão com os preços, com os quilómetros, com tudo. A senhora era um pouco totó, mas acreditou em tudo o que dissemos.
As pessoas em Jasper são relaxadas, confiantes. Gostam de conversar. Sorriem muito e são muito bem-educadas.
Na lavandaria, uma senhora meteu conversa connosco. Percebeu que precisávamos de ajuda e ensinou-nos a trabalhar com a máquina. Vive em Jasper há 15 anos. Tem dois filhos. Gosta da cidade e não se importa com o frio. Diz que chega a fazer menos 40. Contou-nos que um dia faltou a luz em toda a cidade e os bombeiros andaram de porta em porta a perguntar se estava tudo bem.
Enquanto a máquina lavava a nossa roupa, consultámos a Internet. Pela primeira vez desde que estamos no Canadá. Poucas notícias, mas de monta: um editor quer publicar «Palavra de Músico», o meu livro de entrevistas. Só em 2010, porém.
Nas Rochosas, o tempo está sempre a mudar. Tão depressa está fresco como está calor. Pode chover a potes e daí a nada estar um calor de rachar. Há até um ditado que diz: «Se não gostas do tempo que está, espera cinco minutos.»

Sábado, 27. Jasper

First thing in the morning, just after beakfast, comprámos bilhetes de camioneta para Edmonton e alugámos um Toyota Yaris na Hertz para ir a Pyramid Lake e depois até Miett Hot Springs, onde telefonámos para casa (mami, Daniel, Gina e pais da Raquel). Estavam no local várias famílias menonitas, que tive vergonha de fotografar. Mesmo assim ainda tirei á socapa duas fotos. É irresistível ver as raparigas vestidas como as mães, com os mesmos vestidos, feitos nos mesmos tecidos.
Cada família tinha a sua caravana, mas havia umas mais imponentes do que outras.



À beira dos lagos ou dos carreiros que levam à montanha, há bancos públicos, para uma pessoa descansar ou sentar-se a apreciar a paisagem. Todos têm pequenas placas incrustadas, invocando alguém. Este em que estou sentado neste momento, por exemplo, diz: «À memória de X. que tantas vezes se sentou aqui». Inscrições semelhantes estavam também nos bancos dos parques em Vancouver. Na verdade estão por todo o lado aqui no Canadá. Que bela maneira de evocar os mortos!
No caminho para os diversos sítios pudemos ver vários animais selvagens, em particular caribus e cabras da montanha. Quando vais na estrada e vês carros parados sabes logo que estão animais por perto. Apesar dos cartazes e avisos para não sair do carro, poucos conseguem resistir a aproximar-se dos animais para tirar fotografias.
À tarde, fomos até Mount Edith Cavell, talvez o local mais espectacular onde já estivemos nas Rochosas. Adorei o local, com o seu lago gelado, as rochas todas partidas e o vale magnífico a perder de vista.
De repente, ouvi um troar e pude ver um grande pedaço de gelo vir por ali abaixo, desfazendo-se pelo caminho.
Na hora e meia que ali passámos, pudemos assim ouvir três avalanches.
O alto do Monte fascina. Os índios chamavam-lhe «fantasma branco». Foi em 1916 que o monte ganhou o seu nome actual, em memória de uma enfermeira inglesa executada pelos alemães durante a primeira guerra mundial.
As rochas todas cá em baixo, na base do Monte são os vestígios de uma glaciação recente. Tudo começou, parece, há 400 anos, quando um ligeiro resfriamento da terra fez com que os glaciares crescessem. Mais tarde, quando recuaram, deixaram estes montes de pedra, que aqui chamam «moraines».
Agora, pouco a pouco, a vida está a voltar ao vale devastado pelo glaciar. Árvores crescem um pouco por todo o lado.
No trilho que conduz ao glaciar, um esquilo, de repente, atravessa-se à nossa frente. É lindo e fofo e livre. O seu território é magnífico e imagino-me na sua pele enquanto o observo.
Será que tem predadores?
Uma hora mais tarde, são uns pássaros que chamam a minha atenção. Acho que são quebra-nozes, mas não tenho a certeza. Também eles são bonitos, mas não parecem muito simpáticos uns com os outros. Uma mulher atira-lhes pedaços de bolacha e assustam-se uns aos outros para apanhar os melhores bocados. Tal como os homens, têm que fazer prova de esperteza e mostrar-se mais fortes para conseguir alguma coisa.
Que vida!
Vêm-me à memória os menonitas que vi em Miette Hot Springs. Que gente tão estranha e fascinante. Eram várias famílias e todas tinham o mesmo ar rude e infeliz (impressão minha?).
Eles rosados, robustos, com aquele ar típico de lavradores, de gente que vive da terra e da leitura da Bíblia. Elas com uma touca ou um lenço na cabeça, envergando vestidos simples em tecido barato. Pormenor engraçado: as filhas usam exactamente as mesmas roupas das mães, enquanto os rapazes são reproduções em miniatura dos pais.
Não posso deixar de reparar que a cada família corresponde um jipe ou uma carrinha com uma caravana atrelada. E que há caravanas e carros bem melhores do que outros. Por mais religiosos ou comunistas que sejam os homens, haverá sempre uns mais iguais do que outros. Os menonitas não parecem ser excepção.
Morrerei sem ter compreendido a estupidez humana. Não me parece que haja verdadeira inteligência no mundo e o significado da palavra consciência tem que ser muito relativizada.
Como seria o mundo se a proporção fosse completamente invertida e que as pessoas fossem, na sua maioria, sábias ou santas? Como seria um universo onde o bem e a solidariedade fossem a regra?
Será que num universo paralelo, Deus conduz experiências diferentes? Se existe, é bem provável que tenha criado uma infinidade de universos paralelos com realidades completamente diversas e que se entretenha a fazer comparações.
Estou a delirar! É sem dúvida por influência destas montanhas esmagadoras, destas florestas impressionantes que me rodeiam. A sua grandeza, a sua beleza estimula a minha imaginação. Na verdade, exaltam-me.
De repente, gostaria de ser uma árvore no meio das outras. Ter esquilos a trepar por mim acima, sentir os pássaros a esvoaçar dentro de mim, balançar ao sabor do vento e meditar sem fim. Mas até para ser árvore é preciso ter sorte. Não gostaria de ser uma árvore numa rua de Lisboa, por exemplo. A ser árvore, que fosse aqui nas Rochosas, neste vale aos pés do Monte Edith Cavell, onde o ar é puro e os visitantes se mostram civilizados.
De regresso a Jasper, fomos às compras. Como tínhamos passado frio nos glaciares, comprámos polares. A Raquel comprou também umas sandálias, para substituir as que tinha trazido e entretanto se tinham estragado.
Na loja onde comprei o meu polar, estive á conversa um bom bocado com o vendedor. Percebi que era francês e quis saber como tinha ido ali parar. Quis ainda saber quanto ganhava e como era a sua vida. Ele está em Jasper há 4 anos. Veio até aqui por causa do ski e decidiu aqui ficar. Percebo-o perfeitamente.

Domingo, 28. Jasper. Edmonton

Passámos a manhã no Jasper Museum Historical Gallery. Ficámos assim com uma ideia do que foi a construção dos caminhos de ferro. O museu evoca o nascimento da cidade, o aparecimento dos primeiros turistas e a criação do parque Natural. Eis os nomes de algumas das exposições patentes: «Jasper's First Tourist James Carnegie», «Earl of Southesk; a Celebration of the Park Warden Centennial 1909- 2009» e «Cowpoke Episodes: Glimpses into the Life and Times of a Canadian Cowboy, Stan (Windy) Carr».
Uma das histórias que o Museu conta é a dos irmãos Brewster (Jim e Bill), que criaram a primeira agência de turismo na zona. Guias profissionais levavam os visitantes ricos a contemplar os magníficos panoramas das Rochosas, no final do século XIX.
Depois do almoço, apanhámos camioneta para Edmonton. Numa das paragens, em Edson, roubei uma fotografia a um cowboy.



Em Edmonton, fomos para o International Youth Hostel, em Old Strathcona, uma espécie de bairro alto com ruas residenciais, tranquilas. O quarto era básico, mas correcto e a casa de banho, fora do quarto, era mesmo estupenda.
Enquanto passeávamos na Whyte Avenue, percebemos vimos um jovem negro ser preso pela polícia. O ambiente em alguns locais é de barra pesada. Há um forte cheiro a erva no ar, e vêem-se vários vagabundos.
Antes de ir para a cama, jantámos muito bem, num restaurante cajun, muito anos 50, com jukeboxes em cada mesa.

Segunda, 29. Edmonton

Em 1795, a Hudson Bay Company estabaleceu um posto de trocas no local onde actualmente se encontra a cidade. O Forte Edmonton rapidamente se tornou no principal aglomerado da região, tendo posteriormente evoluído para se tornar numa cidade. Hoje é a capital política e universitária da província de Alberta. No centro há uma linha de metropolitano (Light Rail Transit). Para percorrer o resto da cidade, só de autocarro.
Não podíamos deixar de visitar o West End Mall, o maior centro comercial do mundo. A sua superfície equivale a 115 campos de futebol. Para além de 800 lojas, o centro abriga uma praia com palmeiras e ondas, frequentadas por dezenas de pessoas que alugam também umas grandes bóias amarelas de belo efeito. Outras atracções incluem uma pista de gelo, um lago com um barco de piratas e submarinos. Apesar de ser dia de semana, o centro estava cheio de gente.




Na Whyte Avenue passou por nós um casal de vampiros. Vestidos de preto, usavam correntes de metal e eram ambos muito pálidos. Tinham os olhos maquilhados e a mala dela tinha a forma de um caixão. Um pouco mais à frente, vi passar o Davy Crocket. Vestido a rigor, com o chapéu de castor e o fato de pele. Tinha a barba esbranquiçada e aparentava ter uns 50 anos.
Durante o dia, tinha visto outras personagens engraçadas. Estou a lembrar-me, nomeadamente, de duas sudanesas muito elegantes e um adolescente japonês completamente andrógino (impossível decidir se era rapaz ou rapariga).
Edmonton é, ao que parece, a terra dos festivais. Segundo um jornal local, um de cada dois dias do ano um é passado segundo o signo de um qualquer festival. Há festivais de cinema, de música, de teatro, de literatura, etc.

Terça, 30. Comboio, Winnipeg

Estamos de regresso ao comboio, para a última etapa que nos vai levar a Toronto. Uma vez mais, conseguimos apanhar lugares duplos, que nos permitem formar, com o banco da frente, uma espécie de cama. Mas uma cama com altos e baixos e um buraco muito incómodo mesmo a meio.
Em tais condições, a noite foi horrível. Não encontrava posição para dormir e o comboio apitava constantemente, sem dúvida para assustar os animais selvagens que podem estar na linha. Adormecia, acordava, voltava a adormecer para acordar de novo. Sonhos soltos, breves, inquietantes.
De manhã, o Luís descobriu que dormíamos a poucos metros deles e ficou espantadíssimo. Fomos tomar um café e foi como se nada se tivesse passado.
O comboio avança lentamente, com muitas paragens. Antes de chegarmos a Winnipeg (palavra que significa águas turvas), houve uma «jam-session» no wagon-restaurante com uma banda folk. Um trio de guitarra, cavaquinho e banjo com um repertório composto por canções simples, tocadas com genuíno prazer. No final, um velho negro (com longas rastas brancas) sacou de uma harpa de beiços e entoou um blues à maneira. Um momento mágico!
A certa altura, um senhor de idade (a quem faltavam dois dedos na mão direita) meteu conversa com a Raquel para se queixar da violência que assola agora as cidades canadianas. Xenófobo, advoga a pena de morte. Diz preocupar-se pelo futuro do seu país «invadido pelos asiáticos». Em Edmonton, afirma ele, «há agora uma média de um homicídio por semana».
Jorge Luis Borges dizia que a América era a Europa no exílio. Quando o afirmou ainda não se falava de globalização. Hoje somos quase todos exilados, «estranhos» na nossa própria terra.
Lá fora, a paisagem é agora monótona. É uma planície sem fim, onde de vez em quando se vêem pequenas aglomerações, muito pobres. «Como fazem as pessoas para viver aqui?», pergunta-me a Raquel.
No céu, as nuvens emprestam à paisagem um ar «dramático».
Em Winnipeg, aproveitámos a paragem de três horas para (depois de comer qualquer coisa à pressa) dar uma volta pelo centro. Dada a hora (cerca das oito da noite), as ruas estavam quase desertas, mas vimos muitos e belos edifícios. Dá para perceber porque é que a cidade era considerada, no princípio do século XX, a Chicago canadiana.



O espaço aqui não vale nada. Há espaço com fartura, não é preciso economizá-lo.
Nas ruas, um forte cheiro a erva. Passámos por várias pessoas visivelmente pedradas.
Na estação, estava um cowboy a preceito. Vinha buscar a família e estava vestido como se tivesse o cavalo à porta.

Quarta, 1. Comboio

Quanto mais cansado, menos consigo dormir. Acordo cheio de dores. Nas ancas, nas pernas, nos ombros.



Hoje é dia do Canadá. Por isso, à tarde, ofereceram-nos uma fatia de um bolo que reproduzia a bandeira do país.

Quinta, 2, Toronto



A casa dos pais da Raquel fica longe do Centro, depois de High Park. Para lá chegar, sai-se no metro Runnymede e apanha-se o autocarro 79. Nos transportes públicos usam-se aqui umas moedinhas chamadas «tokens» e tem que se pedir «transfers» para passar do metro para o autocarro, ou vice-versa.
O mapa do metro é muito simples. Na prática só há quatro linhas. E quatro direcções: Norte, Sul, este, oeste.
Nos subúrbios, vi muitos velhos, quase todos emigrantes. No centro, vi sobretudo arranha-céus.
Nas casas de banho, encontrei secadores potentíssimos. Em 12 segundos as mãos ficam secas. Também os autoclismos são potentes.

Sexta, 3. Toronto

15º dia de viagem. Nunca me senti tão alheado do tempo. Tão alheado da passagem dos dias. Anoto: «Numa viagem só conta o futuro. O passado transforma-se em fotografias. Tudo o que vivi está agora em cartões de memória».



Os highlights do dia foram a visita à Art Gallery of Ontario (AGO) e ao Kesington Market.



O Museu de Artes Plásticas de Toronto foi fundado em 1900 e é um dos maiores da América do Norte. O edifício foi recentemente ampliado e redesenhado pelo arquitecto Frank Gehry (natural da cidade). O resultado é deveras curioso, tanto por fora (a fachada é toda envidraçada formando uma espécie de onda giigante) como por dentro, com as suas vigas e escadarias monumentais em madeira.
Enquanto espaço museológico só tem um defeito: à força de querer ter de tudo, só dá um cheirinho de cada coisa. Há arte africana, desenhos e fotografia, escultura e pintura e estão lá, evidentemente, os mais importantes artistas do Canadá, mas igualmente obras de Auguste Rodin, Claude Monet, Edgar Degas, Paul Cézanne, Vincent van Gogh, Pablo Picasso e René Magritte, entre outros.
O escultor Henry Moore está muito representado, tendo direito a uma sala própria, pois doou ao estado canadiano algumas centenas de obras.
Neste momento, o AGO tem patente uma grande (e bastante interessante) exposição dedicada ao surrealismo, intitulada «Surreal Things».

Sábado, 4. Toronto

De manhã, no Mocca (Museum of Contemporary Canadian Art), vimos uma exposição intitulada «Pulp Fiction», que reúne obras, dos anos 60 e 70, de artistas canadianos como Marc Bell, Tasha Brotherton, Mark DeLong, Barry Doupe, Shayne Ehman, Liz Garlicki, James Kirkpatrick, Amy Lockhart, Jason McLean, Jennie O'Keefe, Seth Scriver, The Lions e Peter Thompson.
Depois andámos a passear pela Queen Street, antes de ir visitar Richmond e muito particularmente o edifício com o nº 401. Uma antiga fábrica que abriga hoje 140 agentes culturais e empresas na área da cultura. É um espaço incrível, com muitas galerias e algumas lojas de design e/ou artesanato onde vimos coisas super-interessantes.
Às seis horas fomos ao encontro da Jane, uma antiga colega do liceu da Raquel. Já não se viam há 20 anos.
Ela e o marido, um português chamado Dave, levaram-nos a jantar no Mandarim, um buffet chinês. Depois fomos até casa deles, onde ele me mostrou uma banda desenhada em que anda a trabalhar. Na verdade, ele desenha muito bem, mas a história, que gira em torno de equipas de hóquei rivais, é de uma violência inacreditável.
O Dave trabalha para a BMW (não percebi se é mecânico ou vendedor), mas do que gosta mesmo é de desenhar. A Jane é grega. Ou melhor, filha de gregos. Quando falei ao Dave no filme «My Big Fat Greek Wedding», ele exclamou: «É a história da minha vida!»

Domingo, 5. Toronto

Começámos o dia por uma visita à Destilaria. Trata-se de uma antiga destilaria de uísque que abriga hoje um complexo de restaurantes, cafés, lojas de decoração, ateliês e galerias de arte. A área circundante tornou-se num bairro chique.
Numa das muitas galerias que ali há (Clark & Faria), vimos uma exposição do Douglas Copeland. Não sabia que também era artista plástico, mas a verdade é que tinha expostas algumas obras interessantes.



Aquele que o Toronto Star classifica como «this country's best-known cultural multi-tasker: novelist, playwright, actor, TV producer, screenwriter, furniture designer and – oh, right – artist» tinha ali expostas, entre outras coisas, um conjunto de obras inspiradas no retrato da Marilyn Monroe do Andy Wharol a que chamou «Matricídio». Sobre os desenhos da Marilyn ele cola, por exemplo, etiquetas de cerveja.
Havia também uma série de esculturas feitas com cubos com letras coloridas normalmente usadas para ensinar as crianças a compor palavras. Empilhados uns nos outros, os cubos coloridos formavam frases irreverentes como «Quit Your Job», «Fuck off» ou «Define Normal», por exemplo.



Entre humor e ternura, Coupland surge assim como um especialista do ready-made, capaz de sacar novos sentidos e direcções de obras alheias, ou até de objectos correntes. Há um lado cínico naquilo que faz, mas o que vemos também está impregnado de uma subtil nostalgia, parece-me.
Quando saímos dali, percebemos por acaso que estava a decorrer uma Feira da ladra no St. Lawrence Market. Ali comprámos uma placa de madeira muito engraçada onde se lê «Bred & Breakfast», com flores em volta. Um objecto tão piroso que se torna engraçado e que não sei muito bem onde vamos colocar. A Raquel comprou ainda uma mala de mão amarela muito gira, em segunda mão, por apenas 5 dólares.
O passeio continuou em Yorkville, onde ambos comprámos jeans em saldo na GAP e onde comemos uns gelados caseiros muito bons. O cone é feito na altura, à nossa frente.



E, depois de uma passagem pelo festival de jazz, fomos ver o Corso Italiano, uma festa de rua onde encontrámos muitos portugueses. De resto, há naquela rua uma «Portugueses Bookshop» e uma agência de viagens com um painel indicador na montra onde se pode ler: «Portugal 5149 km».



Segunda, 6. Niagara



As cataratas do Niagara são, como se sabe, umas das atracções turísticas mais populares da América do Norte (fala-se de cerca de 14 milhões de visitantes anuais). Para mim era impensável estar ali tão perto e não dar lá um salto, apesar do Oscar Wilde ter escrito que «o Niagara é a segunda grande decepção da recém-casada».
A mim não me decepcionaram. As cataratas são bonitas e imponentes.
O seu ressoar ouve-se à distância, de modo que, muito antes de as vermos, já as estamos a ouvir.
A primeira com que deparei foi logo a seguir à ponte que liga o Canadá e os Estados Unidos. Chamam-lhe «Véu de Casamento», fica do lado americano e tem 64 metros de altura por 340 de largura.
A segunda catarata (dita da Ferradura) é menos alta (50 metros), mas mais larga (800 metros), debitando uma média de 170 mil metros cúbicos de água por minuto.
Do lado americano (onde não fomos) as cataratas só podem ser vistas de lado. Por isso, mais vale vê-las em território canadiano.
As cataratas podem ser vistas de frente, de cima (helicóptero), de baixo, de lado e até por detrás. Contei pelo menos 15 agências que propõem diversos modos de gozar o espectáculo, porém, para mim, a melhor maneira de as sentir é embarcar num dos vários «Maid of the Mist» (Noivas da Névoa), barcos que lembram os antigos cacilheiros e que levam as pessoas até muito perto do local onde toda aquela água cai, com um ribombar colossal elevando no ar uma verdadeira coluna de névoa.
O mínimo que posso dizer é que nunca esquecerei os momentos em que estive envolto em bruma, som e fúria, aos pés da Deusa, sentindo no rosto as suas lágrimas torrenciais. Ouvi com o corpo todo o pranto feliz que lhe dá existência, e aquela molha (apesar do impermeável que nos fornecem, ficamos completamente encharcados) lavou partes da minha alma que nem eu sabia existirem. Foi como se tivesse sido baptizado de novo, desta vez pela própria natureza. Durante alguns momentos não havia barco, nem pessoas, só eu e aquele remoinho compulsivo dentro de mim, cobrindo-me de carícias molhadas. Foi um dos momentos mais eufóricos da minha vida.
Também a Raquel, a Ana e o Daniel pareciam em êxtase. Quanto ao Luís, quando lhe perguntei o que tinha achado, limitou-se a responder com ar blasé: «Foi engraçado!».

Terça, 7. Toronto

Tal como planeado, o dia foi dedicado a compras de última hora. Por mim, comprei um filtro para a minha lente 18-200mm e um livro do Douglas Coupeland: «Souvenir of Canada».
O dia esteve quase sempre cinzento e doíam-me as costas e a perna direita.
A certa altura, num Centro Comercial, assisti a uma cena curiosa. Um grupo de adolescentes encontrou-se ali, a poucos metros do local onde eu esperava a Raquel e pude ver que todos eles se abraçaram. Rapazes e raparigas. Nada de beijinhos. De repente, percebi que nunca vi ninguém beijar-se na face e lembrei-me que a Jane, a amiga da Raquel, ficou muito surpreendida quando eu a cumprimentei com dois beijos á boa maneira portuguesa.
O último dia em Toronto passou a correr e eu só pensava: «Logo à noite vamos voltar para a selva. Para Merdeiras». Pensei: «Todo o país se transformou no Expresso. Saí do Expresso mas continuo preso da mesma mentalidade, da mesma mediocridade». Foi um pensamento arrepiante.

Mais tarde

Mallamé afirmava que tudo acaba num livro. Desde há algum tempo, as minhas viagens acabam efectivamente por resultar em livros. Mas em livros que faço só para mim, com fotos e textos.
Mais uma vez o digo: o ideal seria a viagem não ter fim. Mas isso é impossível. Na vida só há uma coisa interminável: a ideia da morte. Seja como for, de uma coisa tenho eu a certeza: a minha viagem é inédita. Nunca ninguém a fez antes de mim. Há tantos caminhos como viajantes. Este foi o Canadá que encontrei. Ou que me encontrou a mim. Quanto a este texto, não é para ser lido, mas sim relido. Acho eu.

quarta-feira, 4 de março de 2009

Caderno japonês

Dia 23
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Mal saí do aeroporto em Osaka, para entrar no comboio que nos levaria a Tóquio, deliciei-me com as fardas das raparigas da limpeza. Muito jovens, vestidas com cores coloridas, pouco tinham que fazer para além de passear a sua fotogenia, pois à nossa volta, tudo parecia higienizado. Quanto muito havia um jornal abandonado um banco para recolher ou uma garrafa de plástico deixada numa mesinha. Tudo me pareceu imediatamente encantador, muito clean, muito bem iluminado, com cores vistosas que não feriam a vista. A paisagem, que vi através das janelas do comboio, pareceu-me incrivelmente nova, diferente de todas as outras que conhecia. Estava do outro lado do mundo e sentia-o em cada centímetro da minha pele.

 *

Kyoto revelou-se fascinante logo ao primeiro contacto. Para onde quer que olhasse, felicitava-me por ter vindo. Os templos, as flores de papel, os cheiros, a água a correr por todo o lado, as multidões de estudantes nas ruas, com as suas fardas bem engomadas. Tudo era mais espectacular do que esperava encontrar. Mais bonito e mais forte era impossível. Os meus olhos e o meu coração raramente se tinham sentido tão recompensados.

 *

Na rua, apesar dos chuviscos constantes, o encantamento era permanente. Alguns peões, homens e mulheres, novos e velhos, usavam máscaras de cirurgião, sem dúvida para se proteger da poluição. Ou seria porque estavam constipados e não nos queriam pegar a doença? Como ninguém falava inglês, era impossível esclarecer o que quer que fosse. No primeiro dia, o que mais me espantou, foi ser tudo minúsculo. As casas, os carros, as próprias pessoas. Menos os parques, que são imensos, abrigando invariavelmente templos e santuários belíssimos. Algumas senhoras usavam o tradicional quimono de seda. Nas costas têm sempre uma pequena almofada a que chamam «obi». Pergunto-me para que serve. A Raquel chamou-me a atenção para as pernas tortas das raparigas. A maior parte parece que cresceu a andar a cavalo: têm as pernas arqueadas, o que lhes dá um andar curioso. Mas as mulheres, qualquer que seja a sua idade, vestem-se com uma elegância que me deixa comovido.

 *

Quando lhes dirigiamos a palavra, os japoneses ficavam muito atrapalhados. Deveras desolados por não nos entenderem. Percebia-se que queria ser simpáticos, ajudar-nos, mas incapazes de o fazer por não nos entenderem, nem conseguirem fazer-se entender. Felizmente, em quase todo o lado, há indicações em inglês. * Os taxis são muito estilosos, com assentos cobertos de renda e condutores de luvas brancas. Os símbolos que os identificam como táxis, sobre os tejadilhos, são muito engraçados. Uns ostentam um trevo, outros uma estrela ou um coração.

*

Uma das nossas primeiras visitas foi para o famoso templo das Águas, o Kiyomizu-dera, um dos mais visitados da cidade. Um dos locais privilegiados do Templo é uma varanda de madeira suspensa de onde se pode apreciar uma floresta magnífica e parte da cidade ao longe. A sua construção data de 778, quando um monge visionário encontrou uma fonte cuja água tinha virtudes curativas. Os japoneses, principalmente os adolescentes, fazem bicha para beber um pouco de água e rir uns dos outros. Enquanto passeamos por ali (os jardins são magníficos), de vez em quando, um grupo de estudantes fazia questão de ser fotografado na nossa companhia. Sempre que lhes apontávamos a máquina fotográfica, os japoneses sorriam e faziam um V com os dedos apontados para nós. Peace and love? Vitória? Vá-se lá saber. Em todo o caso, é um tique que todos partilham.

 Dia 24

Mal chegámos ao aeroporto de Osaka, fomos ao posto de turismo à procura de um hotel. Perguntaram-nos que tipo de hotel queríamos e quanto é que estávamos dispostos a pagar. Optámos por um Toyoko-Inn, que ficava no centro da cidade. Custava mais ou menos o que estávamos dispostos a pagar e ficava no centro. O quarto era exíguo, mal tinha espaço para a cama. Também a casa de banho é mínima, mas tinha tudo o que é preciso e mais ainda, com repuxos na sanita e outros gadgets que nem chegamos a perceber para que serviam. Neste “business hotel”, como são conhecidos, o atendimento foi super-profissional, a cargo de jovens raparigas impecavelmente fardadas e perfumadas. Na recepção havia prendas para dar aos hóspedes: gravatas, canetas, chaveiros e sei lá que mais. Escolhi uma «lanterna-robot» para ler no escuro. É um objecto curioso. Prateado, parece uma caneta, gorda e achatada. Quando se carrega num botão, desdobra-se e acende-se.

 *

Tal como prometiam os nossos guias (Guide du Routard e Lonely Planet), a estação de comboios de Kyoto impressiona. Foi reconstruída em 1994, por ocasião do aniversário da decisão de aqui instalar a capital do país em 794. Imponente, nas suas linhas futuristas, o edifício abriga um hotel de luxo e uma sala de espectáculos, para além de um centro comercial. Não deixámos, como é evidente, de subir ao último piso onde se encontra um terraço ajardinado que proporciona uma bela vista sobre a cidade. * Todos os templos e palácios que visitámos estavam cheios com estudantes, principalmente do sexo feminino com as suas fardas muito sexys que invariavelmente me faziam pensar no a fotografias do Araki. Mas ainda me encantavam mais os vestidos das monjas, com as suas blusas brancas e longas saias vermelhas. A estas vestais nipónicas chamam «miko». Antigamente, chamavam-lhes «as virgens do templo» e passavam por ser ou feiticeiras ou adivinhas, não percebi bem. Geralmente eram filhas dos sacerdotes e ajudavam-nos nalgumas tarefas. Hoje são principalmente voluntárias ou mesmo trabalhadoras contratadas a prazo. Infelizmente, não tivemos ocasião de assistir às suas danças cerimoniais, que imagino muito sensuais.

 *

A maioria dos japoneses consideram-se tanto xintoístas quanto budistas. Tanto quanto sei, o Xintoísmo é uma religião politeísta nativa do Japão, que passou por um processo sincrético com religiões e filosofias vindas do exterior como o Taoísmo, o Confucionismo e o Budismo. As pessoas vão aos templos para rezar, mas também para pedir favores aos deuses. A maioria escreve os seus desejos em papelinhos que depois dobram de forma a parecer flores e decoram árvores artificiais com eles. Ao longe parecem arbustos floridos. É lindo. Nesses templos, nos jardins e mesmo, por vezes à beira dos passeios, há pequenas estátuas de pedra com gorros na cabeça e uns aventais laranja muito curiosos. Penso que são deuses ou duendes. Quando estão ao pé de um lago, ou se uma simples poça de água, as pessoas deitam modinhas lá para dentro.

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De uma coisa fiquei com a certeza: o Japão é de longe o país mais civilizado do mundo. Nunca estive num local mais aprazível e sereno, onde as pessoas são um exemplo de civilidade e elegância. Quando nos dirigimos a uma pessoa para lhe pedir uma informação, chega a ser embaraçoso, pois não sabem comunicar connosco, mas querem ajudar-nos a todo o custo, ficam com um ar que mete pena e temos dificuldade em afastar-nos com receio de ferir a sua sensibilidade. Procuram genuinamente compreender-nos e sente-se que seriam capazes de tudo para nos agradar. * As casas, as ruas, os carros, estava tudo irrepreensível. Quando chovia, havia baldes e recipientes à porta das casas, para recolher a água da chuva, como se fazia no Congo. Não que falte aqui: trata-se apenas de (re)aproveitar um bem essencial. Os autoclismos, por exemplo, têm uma torneira para que lavemos as mãos na água que vai encher o depósito, para lhe dar dois usos em vez de um só. É simplesmente genial.

 *

Kyoto, que na altura se chamava Heian-kio, foi a capital do Japão entre 794 e 1868 (Kyoto quer dizer cidade-capital e é anagrama de Tokyo, se repararem bem). Quando a visitei, em 2006, tinha cerca de milhão e meio de habitantes e era, certamente, uma das cidades mais bonitas do mundo, rodeada de florestas e fontes de água. É também a cidade do Japão que tem mais templos e santuários. E pensar que os americanos ainda ponderaram deitar aqui uma bomba atómica!

 Dias 25 e 26

Embora Kyoto seja pelo menos tão grande como Lisboa, nunca tivemos que apanhar um transporte. Percorríamos a cidade a pé, conscientes de que é essa a melhor maneira de ver tudo como deve ser. No segundo dia da nossa estada, passeámos pela parte mais moderna da cidade (com grandes avenidas pejadas de lojas e restaurantes chiques), e na manhã seguinte fomos deambular ao longo dos canais, em bairros mais antigos onde há ainda muitas casas de madeira. As casas parecem saídas de um conto de fadas e, por todo o lado reina uma calma infinita.

 *

Nas nossas deambulações, passámos em frente de vários «love hotel». Já tinha lido sobre eles. Destinados aos namorados e aos amantes ocasionais, estão abertos 24 horas por dia e não têm propriamente recepção. Tudo se passa de modo anónimo e podem ser alugados à hora. Há diversos tipos de quartos, que remetem para os mais diversos imaginários e fantasias. Estivemos muito tentados em experimentar um, mas acabámos por não o fazer, para grande pena minha. Em contrapartida, passámos duas noites num «ryokan», uma espécie de pensão tradicional, que se revelou uma experiência inesquecível. O recepcionista não falava uma palavra de inglês, mas parecia perceber o que dizíamos. Por isso, lá nos indicou, por escrito, o preço, que era mais ou menos o mesmo que pagávamos no Toyoko-Inn, cerca de 50 euros por noite. Quando lhe perguntámos se podíamos ver o quarto, estendeu-nos uma folha impressa onde se dizia mais ou menos isto em inglês: «No Japão é falta de educação pedir para ver os quartos». Tive que me conter para não desatar a rir. Depois, quando acedemos em pagar o preço, estendeu-nos uma outra folha que explicava que tínhamos forçosamente que deixar o quarto até às 11 da manhã e que não poderíamos regressar antes das quatro da tarde. O quarto era, como seria de esperar, minimalista. Em vez de cama, tinha dois colchões enrolados a um canto. Havia também uma mesinha baixa, com uma chaleira, chávenas e todo o necessário para fazer chá. Na casa de banho, dois roupões e chinelos. Espartano, mas confortável e cheio de charme.

 *

Uma noite fomos espreitar o bairro Pontocho, situado numa ilha e que parece ser o centro de diversão nocturna. Numa livraria, cheia de livros em segunda mão, comprei The Dying Animal do Philip Roth, numa edição de bolso. Baratíssimo. * Na manhã do sexto dia, partimos para Tóquio. Ainda pensámos ir no comboio bala, mas era demasiado caro. Optámos por isso por um autocarro nocturno. O horário está feiro de modo a dormires toda a viagem mas a acordar uma hora antes de chegar à capital, para te dar tempo para te preparares e não perderes a emoção de chegar à capital do país. Como fomos os primeiros a reservar os bilhetes da camioneta, ficámos com o melhor lugar, lá em cima no primeiro andar, mesmo em frente à janela, com vista panorâmica.

Dia 27

Em Tóquio fomos para outro Toyoko Inn, infelizmente um tanto descentrado porque os outros estavam todos cheios. Mas como havia uma estação de metro quase à porta, não nos importámos muito. Não foi, no entanto, muito fácil dar com o hotel. Tínhamos a morada mas ninguém parecia conhecer a rua. A folha que imprimíramos da Internet dizia que ficava a 500 metros do metro. Já um pouco desesperados, abordámos um polícia que nos apontou uma direcção. Mas não víamos Toyoko Inn em lado nenhum. Por fim, um rapaz que percebeu o nosso desespero, abordou-nos num inglês quase perfeito. Tinha vivido nos Estados Unidos e estava agora de regresso a casa. Com a sua ajuda foi fácil encontrar o hotel. Era ali perto, mas numa rua secundária que ainda não tínhamos percorrido.

*

Segundo a Wikipédia, a região metropolitana de Tóquio é uma das maiores concentrações urbanas do mundo, com cerca de 30 milhões de habitantes. Em japonês, Tóquio quer dizer «capital do Leste». O mapa do Metro é impressionante. Uma teia densa de linhas coloridas que cobrem toda a superfície da cidade. Se bem percebi, há duas linhas distintas, que se completam. Cada linha tem uma cor, cada estação um número. Os mapas são muito claros e é facílimo uma pessoa orientar-se. Não tivemos a menor dificuldade nesse aspecto.

 *

O nosso primeiro passeio foi até ao principal templo no centro da cidade, o Senso-ji, também conhecido como Asakusa Kannon. É um dos mais importantes ícones da capital japonesa, com suas lanternas enormes decoradas e o portão laqueado de vermelho na entrada sul. Fundado no século XVII em homenagem a Kannon, a deusa da Piedade, o templo (budista) tem seus portões guardados pelos deuses Raijin, deus do Trovão, e Fujin, deus do Vento. À volta do templo há dezenas, ou mesmo centenas de lojas para turistas, mas desde que chegámos ao Japão, quase não temos visto estrangeiros.

 *

À tarde fomos para Shinjuku. Aí, numa daquelas lojas enormes com equipamentos electrónicos comprei uma nova máquina fotográfica, uma Nikon D200. Não resisti, tanto mais que custa quase metade do que custa na Europa. Shinjuku é impressionante, com os seus arranha-céus cobertos por néons e onde o comércio não se limita ao rés-do-chão, antes se estende a todos os andares. Um só prédio abriga vários negócios: restaurantes, bares, lojas de roupa, tudo o que se possa imaginar. E, claro, há casas de pachinko por todo o lado. O pachinko é o jogo nacional. Está por todo o lado e sempre cheio de gente. O pachinko é uma máquina de jogo entre o flipper e a slot-machine, que se joga com berlindes metálicos. É preciso ver para crer. Cada jogador tem aos pés, caixas de plástico cheias de esferas de metal com que vai alimentando a máquina. Impossível perceber como se joga, mas é hipnótico. As máquinas são muito coloridas e piscam emitindo sons maviosos. Tanto quanto sei, tudo o que se ganha são mais esferas de metal que, no final, podes trocar por prendas, pois os prémios em dinheiro estão proibidos.

 *

Para o nosso primeiro jantar em Tóquio omos espreitar a «Piss alley», depois de termos passeado por Kabukicho, o «red light district» local, cujos cabarés têm à porta dezenas de fotografias de meninos e meninas, cada um mais bonito do que o outro. Beleza à la carte, para quem pode pagá-la! Como o nome indica a «piss alley», cujo verdadeiro nome é shomben yokocho, é uma ruela estreita e mal iluminada (mas não cheira mal). Não fica muito longe da impressionante estação de Shinjuku e abriga dezenas de pequenos bares e restaurantes (a maioria deles não leva mais do que uma dezena de clientes de cada vez) onde se come ao balcão, petiscos deliciosos (mas caros), quase invariavelmente acompanhados por saké. Deliciámo-nos.

 Dia 28

A Nikon D200 teve um baptismo de fogo em beleza. De manhã cedo, muito perto do hotel, apanhámos uma feira, com um mercado de rua cheio de barraquinhas de comida. Doces, salgados, frutas e legumes confecionamos na hora, era o que se quisesse. Instantes mais tarde, deparámos com um teatro de rua e, mais adiante, com uma procissão que envolveu alguns milhares de pessoas durante toda a manhã. No mercado, deparámos com um sujeito que fazia chupa-chupas com forma de animais – cães, cavalos, cisnes – de uma perfeição espantosa. Num minuto, ou pouco mais, realizava miniaturas que eram imediatamente devoradas por crianças gulosas. Difícil imaginar objectos artísticos mais comoventes e efémeros do que estes. Durante a procissão que referi, um dos participantes despiu, de repente, a sua veste tradicional e estendeu-ma, dando-me a entender que gostaria de me ver a substitui-lo durante algum tempo. Assim fiz, misturando-me na multidão que me acolheu com sorrisos de simpatia. Enquanto me fotografava, a Raquel ria a bandeiras despregadas, mas para mim não foi uma experiência muito agradável. O andor era pesadíssimo, eu estava comprimido entre dois carregadores suados e a cada passo a trave de madeira esmagava-me um pouco mais o ombro, tanto mais que o avanço se fazia de forma sincopada. Fiquei aliviado quando o sujeito, por fim, me veio render.

 *

À tarde, e como era domingo, fomos para Harajuku, pois eu queria muito fotografar as celebérrimas “lolitas góticas”. Mal saímos do metro, deparei logo com uma dessas lolitas. Parecia efectivamente uma boneca de porcelana do tempo da minha bisavó. Cá fora, ocupando toda a ponte que conduz ao parque, e também nas imediações, estavam algumas dezenas de jovens com visuais tão ou mais espectaculares. Umas mais punk, outras mais futuristas, mas todas fotogénicas. Algumas pareciam mulheres fatais, outras crianças como só se vêem na banda desenhada. Pelo meio havia rapazes que se faziam passar por raparigas e raparigas que queriam parecer rapazes. Nalguns casos era muito difícil perceber qual o sexo da pessoa que estava a fotografar. Não há maneira de descrever a fantasia daquela gente, nem os objectos de que se servem em profusão para se afirmar. No conjunto revelam uma imaginação delirante. Era como estar num palco enorme, rodeado de personagens pertencentes a vários filmes diferentes, cada um mais improvável do que o vizinho do lado. Tirei muitas centenas de fotografias ao longo desse dia, de tal modo que este 28 de Maio deve ser a data mais bem documentada de toda a minha vida.

dia 29

Acordámos cedíssimo para ir visitar o «Tsukiji fish market», o maior mercado de peixe e marisco do mundo. Impressionante e gigantesco, com efeito. Nunca tinha visto tantos peixes loucos, para já não falar de seres aquáticos ainda mais estranhos, que nem sabia que existiam. Fiquei muito impressionado por uns mexilhões maiores que a minha mão, por exemplo. Mas os nossos planos para ir comer o famoso sushi numa das tascas do mercado caiu por terra, pois havia bichas enormes à porta dos restaurantes e teríamos que ali ficar horas à espera de vez. Por isso, escolhemos no nosso guia um restaurante que garantia um dos melhores sushi da cidade e foi aí que nos regalámos. À tarde, embarcámos num barco que nos permitiu ter outra perspectiva da cidade e que nos deixou num parque lindíssimo onde nos perdemos de propósito porque não há, na minha opinião, melhor maneira de visitar um parque do que perdendo o fio à meada. O Museu da Fotografia que visitamos na manhã seguinte, não me desiludiu, com a sua arquitectura moderna e yuppies por todo o lado. Cá fora, amplos espaços onde as mães vêm passear os filhos e os burocratas vêm almoçar ao ar livre, os bento (marmita japonesa com uma variedade de sabores e texturas, tão bonitas como saborosas).

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À tarde, fomos visitar os cenários do Lost in Translation. Ou melhor, o hotel Park Hyatt Tokyo, em Shinjuku, onde estavam hospedados o Bill Murray e a Scarlet Johansson. Sem que ninguém nos incomodasse, pudemos passear por todo o lado, á excepção dos quartos, e subir ao 52º piso, que oferece vistas espectaculares da cidade. A caminho do hotel, contudo, ao longo do parque, vimos vários sem-abrigo, o que me deixou incrédulo. Numa sociedade destas, onde tudo parece tão civilizado e bem regulado, não se imagina que possa haver gente a dormir ao relento. É verdade que alguns tinham tendas de campismo, e que estavam confinados a um parque, mas mesmo assim.

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Há vários cemitérios em Tóquio e eu queria ver um. Fomos à procura de um dos principais e era um parque enorme, tentacular, com ramificações dentro de jardins particulares. Na verdade, havia campas por todo o lado, até nos pátios de alguns condomínios privados. Deu para perceber que aqui, vivos e mortos convivem em harmonia, zelando uns pelos outros, sem dramas nem medos.

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Nas páginas dedicadas aos restaurantes da área, havia um instalado num Chalet suiço. Fomos espreitar e nem queríamos acreditar nos nossos olhos. Tanto fora como dentro da vivenda, a ilusão é perfeita. Trata-se de uma réplica exacta de uma casinha helvética, onde a única coisa que destoa são as caras das pessoas (clientes e funcionários). De resto, parece que estamos nos Alpes.

1 de Junho

Para o último dia em Tóquio, voltámos a Harajuku, pois não tínhamos visto um dos templos mais conhecidos, e havia uma grande parte do bairro por onde ainda não tínhamos passado. Mais uma vez, vi várias fotos da Audrey Hepburn, em montras ou em cartazes. A actriz parece ser aqui uma figura de culto. Talvez ela represente, aos olhos dos japoneses, o ideal da beleza ocidental. De resto, foi um dia consagrado a compras de última hora: roupas, artesanato, guloseimas que dificilmente encontraríamos noutras partes do mundo.

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Situada na região de Kansai, Osaka é terceira maior cidade do Japão e como é aqui que ficava o aeroporto para o nosso voo de regresso, decidimos lá passar pelo menos uma noite e um dia inteiro. O castelo da cidade é um dos mais famosos do país e foi aí que nos dirigimos em primeiro lugar. Está no interior de um parque murado e o edifício central tem oito andares. A sua origem remonta ao século XVI e o último restauro data de 1995. O interior abriga um museu. Do último andar pode ver-se o centro da cidade. A vista é magnífica. Cá fora, muitas dezenas de estudantes, descalças, sentadas no chão, desenhavam o castelo em grandes folhas A 2. Lá dentro várias escolas primárias, pois o castelo abriga um importante museu que conta a história do país com a ajuda de vídeos e instalações animadas.

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De regresso ao centro, fomos descansar os nossos pãezinhos doridos de tanto andar para a esplanada de um café bem no centro da cidade. Na sala, estavam duas jovens a dormir a sono solto. Aqui parece ser uma coisa natural: há gente a dormir em todo o lado, nos jardins, nos transportes públicos, e até nos cafés, pelos vistos. A esmagadora parte das pessoas que andam de metro em Tóquio fazem uma destas três coisas: ou dormem, ou estão às voltas com o telemóvel (jogando ou navegando na Net) ou lêem, livros de bolso invariavelmente forrados a papel. Para proteger os livros ou para que não se perceba o que estão a ler? Nalguns casos, pelo menos, pelo que pude ver, trata-se de mangas eróticos bem sugestivos.

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Quando estávamos no café, tristes porque este seria o último dia que passaríamos no Japão, reparámos de repente que, na rua em frente, havia uma bicha para uma loja mínima, uma espécie de quiosque com um balcão que dá para a rua. Cada pessoa que deixava a fila, depois de atendida, era substituída por outra, de forma que a fila parecia ter sempre, mais ou menos, o mesmo tamanho. Isso despertou-nos a curiosidade e fomos espreitar. Estavam a vender o que nos pareceu ser um bolo dentro de uma caixa de papel. Toda a gente levava dois ou três e, naturalmente, quisemos provar também. Quando estávamos na bicha, uma empregada da loja veio oferecer-nos uma fatia. Era uma espécie de pão de ló delicioso, muito fofinho com um sabor muito subtil a cheesecake. Comprámos dois bolos e posso jurar que foi o melhor pão de ló que comemos na vida.

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Um provérbio japonês diz que o país é como um ser humano cuja cabeça seria Kyoto, o estômago Osaka e o coração Tóquio. Precisamente as três cidades que visitámos. Coincidência feliz.