Por isso, apesar do frio e dos chuviscos frequentes, atravessei (atravessámos) a cidade a pé, numa ânsia louca (e descabida) de tudo descobrir imediatamente. Em poucas horas fomos da estação (Termini), onde fica o nosso hotel, até a Trastevere, do outro lado do rio, onde a Raquel queria jantar.
A vista da ponte é magnífica e tirei aí as minhas primeiras fotografias. Na outra margem, dei de caras com a «Casa de Dante». Foi gasolina para a minha já incendiada imaginação.
Bairro popular por tradição (e a tradição aqui remonta à época dos Césares), o Trastevere é uma espécie de Bairro Alto romano com muitos bares e restaurantes, frequentados sobretudo por estudantes e turistas.
Antes de jantar, percorremos longamente as ruas vizinhas e, já esgotados, fomos descansar os pés na Basílica de Santa Maria, a primeira igreja construída em Roma (pelo Papa Calisto III). Uma bela igreja situada numa bela praça, que é o coração do bairro. Na fachada estão fragmentos de lápides e duas «anunciações» do século XV.
Ali perto, pudemos visitar também uma bonita farmácia que data do século XVII, com vidros e paredes com deliciosas pinturas.
Por mais incrível que pareça, depois de um belíssimo jantar no Mario’s, voltámos a pé para o hotel, atravessando todo o centro para ver «Roma by night».
2º dia, Domingo 31
Depois de um longo percurso, sem rumo predefinido, fomos dar, sem querer, à famosa Piazza del Campidoglio, desenhada por Miguel Ângelo. O céu, coberto de nuvens cinzentas, deixava passar alguns raios de sol. A luz estava magnífica, «coada», como se alguém tivesse aplicado no céu um filtro polarizador destinado a fazer sobressair os pormenores da arquitectura e das esculturas. Em dias assim, a luz é uma verdadeira lupa.
Ao desembocar naquele local, vindo pelas traseiras, fiquei tão deslumbrado que me lembro de ter pensado: «Esta é, porventura, a mais bonita praça onde já alguma vez estive». Vivi ali um momento mágico, a olhar para aqueles edifícios perfeitos e para aquelas estátuas que emprestam ao local uma vibração muito especial. Para mais, mesmo no centro da praça do Capitólio está a estátua equestre de Marco Aurélio (é uma cópia, pois a verdadeira está protegida dentro de um dos palácios), um pensador que tanto admiro.
Li algures que a estátua só se salvou porque na Idade Média pensava-se que representava Constantino, o primeiro imperador que protegeu os cristãos. Se não fosse isso, teria sido derretida para fazer sinos, como aconteceu com tantas outras esculturas de bronze.
O largo quadrado está circundado por três palácios, abrigando dois museus que prometi a mim mesmo visitar noutro dia. O quarto lado tem uma balaustrada, de onde se pode ver parte da cidade. Dá para uma escadaria que desce até ao centro, mas não foi por aí que descemos. Circundámos a praça e fomos dar à parte de cima do alvíssimo Monumento a Victtorio Emanuele II, a que alguns romanos chamam, ternamente, «a máquina de escrever», por causa da sua forma muito particular.
Descendo para a Piazza Venezia, metemos pela rua dos foros imperiais onde se podem avistar todo o tipo de ruínas. São várias camadas de história que se oferecem aos nossos olhos, pelo que, enquanto caminhava ia pensando: «O tempo reduz tudo a cinzas e pó, só a monumentalidade assegura alguma longevidade. Os imperadores romanos, como os faraós do Egipto sabiam-no por certo». Contudo, nem mesmo os mais grandiosos monumentos da humanidade resistirão eternamente.
Pensando nos milhões de pessoas que tiveram que sofrer para construir estes e outros monumentos que, antes de mais nada, celebram a vaidade de alguns tiranos, enchi-me de tristeza. São, com efeito, necessárias muitas vidas sacrificadas para um instante de grandeza. Veio-me à cabeça um exemplo dos nossos dias: a maior torre do mundo que vi ser construída no Dubai, por milhares de operários indianos que trabalham em regime quase de escravatura.
À hora do almoço, caiu uma forte carga de água que nos impediu de continuar a passear. Aproveitámos para nos refugiar num restaurante onde comemos uma pizza deliciosa. Mais tarde, já com a barriga cheia, fomos visitar o Coliseu. Observando as ruínas, voltaram os pensamentos sombrios. Pareceu-me ouvir os gritos da multidão, o ruído das armas, os rugidos dos leões, a aflição dos escravos e dos presos. Imaginei o entusiasmo de uns e o terror dos outros. Mentalmente anotei: «Antigamente ia-se ao circo para ver morrer, hoje basta acender a televisão».
Ao pé do Coliseu, alguns indianos (estão por toda a parte, tal como os pedintes romenos) vendiam chapéus de chuva. Queriam vendê-los mesmo a quem vinha munido de um, como era o nosso caso. A quem traz um chapéu pequeno, propõem um grande. A quem traz um grande, propõem um pequeno. E são insistentes. Umas verdadeiras chagas.
No Aventino, um museu mínimo, deparei com meia-dúzia de esculturas, já meio destruídas, mas de eleição: metade de um rosto aqui, um corpo de mulher sem rosto ali, um vestido de pregas acolá e uma cara de menina mais além. Verdadeiros poemas de pedra, de artistas anónimos, que me comoveram.
À saída, tomei uma nota no meu caderninho: «Todos poderíamos ser génios nalguma coisa se a escola estivesse vocacionada para descobrir o melhor em cada um de nós. Se a escola não fosse uma fábrica de alienação».
No caminho para o hotel, a minha cabeça não parava. Pensava: «Bichos dotados de alguma inteligência, ardemos como agulhas inconsequentes». E depois: «O que seria uma humanidade que vivesse só para o bem? Que vivesse para criar e se proteger? Como seria o mundo se todos quiséssemos o bem de todos? Isso sim, seria magnífico: um mundo de gente simples e inteligente.»
Mais tarde
Terei de voltar a Roma, parece-me óbvio. Esta cidade não se esgota com uma visita. Aliás, isso não acontece com local nenhum. Com muitas poucas excepções, fico sempre com vontade de voltar aos locais que visito. Mas algumas cidades têm uma maneira muito própria de exigir uma nova visita. Daí as moedas na Fontana di Trevi, um ritual a que poucos escapam. Não deve haver ninguém que não queira regressar a Roma, acho eu.
Não coloquei a mão na Boca da Verdade, nem sequer a fotografei. No local, um letreiro exigia 50 cêntimos a cada turista para o fazer, especificando: «Uma foto por pessoa». Pensei: «Aqui, até as mentiras se pagam».
Mais tarde
Ao jantar (comemos num restaurante ao pé da estação de comboios), uma francesa come os dois jovens empregados com os olhos. Sorri-lhes o tempo todo e faz-lhes olhinhos. A Raquel comenta: «Aquela está com o cio». Eu respondo: «Também uma cidade pode despertar-te um desejo tão forte como o desejo sexual. Ao ponto de a queres possuir. Também eu sinto uma espécie de cio por Roma. Quero ver tudo, ir a todo o lado». A Raquel encolhe os ombros e suspira: «Depois, o corpo é que paga».
3º Dia, 1 de Fevereiro
Piazza Navone, Fontana di Trevi, Piazza de Espagna, Gueto… foi aproveitar o sol ao máximo.
No bairro judeu, comemos maravilhosamente. Primeiro uns bolos comprados numa pequena padaria, depois um esparguete com marisco de cair para o lado, numa tasca que nem sequer era recomendada pelos nossos guias (como sempre viajamos com um Guide du Routard, desta feita na tradução espanhola, e um Lonely Planet).
Na praça de Espanha, a Raquel comprou um par de luvas de cabedal (parece que cada dia que passa está mais frio que o anterior). Quanto a mim, comprei um livro de fotografias do Mario Giacomelli, um dos fotógrafos de que mais aprecio.
Às cinco da tarde já não podíamos andar mais. Metemo-nos num autocarro e viemos para o hotel, onde acabámos por adormecer, extenuados.
Quando chegou a hora de ir jantar, desabafei: «Só me apetecia ir descalço». A Raquel riu, percebendo muito bem o que eu estava a sentir. Temos ambos os pés inchados e doem-nos todos os músculos das pernas e das ancas.
4º dia, terça-feira
Jantar no Leoncino, uma pizzaria aconselhada pelo Trotamundos, a versão espanhola do Guide du Routard, que me foi oferecido no dia em que fiz 60 anos. De resto, o exemplar que tenho comigo está assinado por todos os amigos que foram a esse jantar e que me ofereceram cheques de viagem para que eu pudesse, finalmente, conhecer Roma.
O Leoncino (um restaurante que nunca mais vou esquecer) é frequentado quase exclusivamente por italianos. Do canto onde nos encontramos, vejo várias personagens que poderiam perfeitamente figurar num filme do Fellini. A meu lado, um casal de lésbicas, já meias bêbadas, interrompem de vez em quando a refeição para ir lá fora fumar um cigarro. Uma tem o rosto muito vermelho, a outra ostenta uma cabeça enorme. Ambas feias, têm ar de se amar loucamente.
Numa mesa à minha frente está uma falsa loira com lábios injectados com botox. Aquela boca enorme dá-lhe um ar tão lastimável que passo o tempo todo a evitar olhar para ela.
Noutra mesa, está uma versão caricatural do Larry David, um dos criadores do Seinfeld e do Curb Your Enthusiasm (duas séries televisivas) e actor principal do novo e divertidíssimo filme de Woody Allen, Whatever Works. Trata-se de um careca já sexagenário, com um resto de cabelo comprido na nuca. Tem óculos de aro grosso e um nariz enorme, tipicamente judeu.
O próprio empregado que nos serve, também ele sexagenário, é de antologia. Parece o deus Baco vestido com uma bata branca. O seu ar não engana: gosta mais da pinga do que da mãe. Barrigudo, tem um ar bonacheirão e cofia constantemente a barba e o cabelo grisalhos. Ri com frequência e é afável com toda a gente. Sem dúvida que lhe deixarei uma boa gorjeta, tanto mais que as pizzas são óptimas, com massas fininhas e ingredientes frescos.
O vinho da casa podia ser melhor, mas como vem fresquinho, escorrega com facilidade. Parecia muito e bebemo-lo todo.
***
Há anos que ouvia dizer que a Villa Borghese é um dos museus mais bonitos do mundo. Pois bem, é verdade.
Escondido nos jardins de Pincio, o palácio foi construído em 1613 pelo cardeal Scipion Borghese, que ali queria reunir a sua fabulosa colecção de arte. Actualmente, o número de visitantes está restringido a 360 de cada vez, pelo que convém reservar.
Já agora uma observação: apesar de todos os guias de viagem afirmarem que a melhor maneira para chegar ao museu é sair no Metro Flamínio, recomendo antes sair na Piazza de Spagna e seguir pelos corredores subterrâneos que indicam Villa Borghese.
Entre inúmeras maravilhas (possui obras de Rubens, Ticiano, Dürer, etc), as que mais me marcaram foram duas esculturas de Bernini («O rapto de Proserpina» e «Apolo e Dafne») e dois quadros de Caravaggio («David e Golias» e «A Madona com a Serpente»).
Já tinha visto reproduções do «David e Golias», mas ao vivo o quadro tem a força de um murro no estômago. Um jovem David segura pelos cabelos a cabeça degolada de Golias, que tem os olhos e a boca horrivelmente abertos. Na verdade, este Golias é o próprio Michelangelo Merisi (Caravaggio era o nome da sua aldeia natal, que ele adoptou como nome artístico), que viria a falecer pouco tempo depois em circunstâncias nunca completamente esclarecidas (faleceu a 18 de Julho de 1610, aos 37 anos).
Com este quadro, pintado propositadamente para oferecer ao Papa, o pintor queria fazer-se perdoar um crime hediondo a fim de regressar finalmente à Pátria. O facto de se ter colocado no lugar do morto é visto como um sinal do seu arrependimento.
Gostei ainda mais d’«A Madona com a Serpente» onde vemos a Virgem segurar no menino (já quase adolescente) sob o olhar atento de uma outra mulher. Jesus está nu e pisa o pé da mãe que por sua vez pisa uma cobra que se contorce sob a pressão. O simbolismo é evidente, mas a mistura de ingenuidade angelical que se desprende das duas figuras santas contrasta com a forte carga erótica representada pelo contacto dos pés, o decote da virgem e a pilinha bem em evidência do seu filho.
Sabemos que aos olhos de Caravaggio, Maria representava «a» mulher e que para representar a Virgem Maria escolhia geralmente meretrizes, como no quadro que acabo de descrever. Caravaggio era de resto um «rufia», conhecido por procurar brigas, frequentar o submundo e andar com armas proibidas por lei. Como se sabe, esteve preso por diversas vezes e viria a assassinar um homem (no dia 29 de Maio de 1606), pelo que teve de fugir de Itália e viver exilado até ao fim dos seus dias.
À tarde, visitámos os Museus Capitolinos (Palácio dos Conservadores e Palácio Novo). No primeiro, estão mais dois belíssimos quadros de Caravaggio, um representando uma cigana que lê a sina a um jovem fidalgo, o outro, São João Baptista. Ou seja, esta noite vou adormecer novamente com os olhos cheios de coisas belas.
(Àparte: nos museus romanos, os cidadãos europeus com mais de 65 anos, ou menos de 18, não pagam.)
Num jornal que li hoje no metro, o escritor francês Daniel Pennac opina: «O homem constrói porque está vivo, mas escreve livros porque se sabe mortal. Vive em grupo porque é gregário, mas lê porque se sente só».
No mesmo jornal, uma notícia afirma que, no final de 2009, havia qualquer coisa como 212 milhões de desempregados no mundo. Tristemente, eu sou um deles.
5º Dia, quarta-feira
A Raquel acordou doente. Doe-lhe a cabeça, está mal disposta e parece febril. Não quis levantar-se, nem para tomar o pequeno-almoço. Recusa-se também a ir ao hospital. «Deixa-me dormir», suplica, para logo acrescentar: «Vai tu à Central Montemartini».
Fui.
A Central é uma extensão dos Museus Capitolinos instalada numa antiga fábrica na margem sul do Tibre. Ali, uma bela colecção de escultura da antiguidade clássica está misturada com maquinaria que data do princípio do século XX.
O espólio da Central Montemartini inclui várias estátuas que ornavam o frontespício do Templo de Apolo Sossiano, por exemplo.
Algumas das esculturas estão muito «comidas pelo tempo». Ou sejam, começaram há muito a desaparecer. Perante estes rostos a que faltam já o nariz, a boca e, nalguns casos, até os olhos, surpreendi-me a pensar nos homens que representam. Queriam que o seu retrato perdurasse, mas não ficará cá memória de ninguém, nem dos imperadores, nem dos filósofos ou simples anónimos. «Tout doit disparaître», como dizem os cartazes de algumas lojas francesas. O tempo tudo devora, como muito bem lembra um poema de Séneca que não resisto a transcrever (numa tradução um bocado atabalhoada do francês):
Insaciável, o tempo tudo devora e colhe,
Tudo destrói mão poupando nada.
O rio seca, a praia também,
A montanha treme e o cume rui.
Que imposta tudo isto? O próprio céu
Se incendiará por completo subitamente.
A morte tudo aspira: é uma lei, não vale a pena chorar.
Um dia, o mundo deixará de existir.
Outras estátuas comovem-nos pela delicadeza das feições, das poses, ou de um detalhe pitoresco. Notáveis as estátuas de jovens efebos, com nádegas e pernas de mulher, mas enfeitados com atributos bem masculinos. A atracção pela androginia e a ambiguidade sexual já vem de longe.
À tarde, vista ao Museu Nacional Romano. Mais estátuas, algumas magníficas e muitas moedas. O que mais me encantou foram os frescos, os murais funerários e as pinturas de jardim que enfeitavam as moradias romanas.
Lindas as figuras femininas e também os animais, que fotografei sem vergonha. Como gostaria de dormir entre paredes pintadas por estes artistas!
Numa outra sala, vi uma reconstituição virtual de uma vivenda romana que me deixou estupefacto. Aquilo sim, era luxo. Os filhos da mãe sabiam viver. Quase constantemente mergulhados em guerras e intrigas palacianas que lhes podiam custar a vida a todo o momento, gozavam a vida ao máximo, não se poupando nenhum prazer. Comiam bem, bebiam melhor, fornicavam que nem coelhos e rodeavam-se de coisas belas. De uma coisa não os podemos acusar: de falta de sentido estético.
(Àparte: às bocas de incêndio, os italianos chamam idratante.)
***
Num jornal gratuito, que apanhei no Metro, leio: «Os italianos são um povo de bloggers». Segundo a notícia, mais de um milhão de italianos mantém um blogue. 2, 3 milhões lêem-nos e há mesmo quase 700 mil internautas que afirmam informar-se exclusivamente nos blogues. Os dois temas mais procurados neste país são o desporto e a actualidade.
Dos apontamentos que tomei ao longo do dia, destaco este: «Viajar é a minha maneira de viver poeticamente cada minuto que passa.» E já agora mais um: «De tudo o que vi e ouvi no mundo, o que retive de essencial fui sempre eu. Eu sou o meu futuro. O mundo é o meu caminho: o rio que me há-de levar até ao fim.»
Quando cheguei ao quarto, a Raquel acordou. Apeteceu-me dizer-lhe: «A minha casa é onde tu estás.»
6º Dia
A Raquel sente-se melhor, por isso, decidiu ir comigo ao Vaticano.
Na Basílica, logo à entrada, está a famosa «Pietá». Protegida por um vidro desde que foi vandalizada, apenas se pode ver ao longe. Com tanta gente a tirar-lhe fotografias, nem dá para ver bem. Para além da monumentalidade, a basílica é realmente bonita. Gostei do púlpito e do baldaquino de Bernini, extremamente original. Diz a Wikipédia: «Trata-se de um alto baldaquino de bronze dourado, de quase 30 metros de altura, construído de 1624 a 1633. De plintos em mármore, que mostram o escudo de armas do papa, erguem-se quatro colunas torcidas que suportam o peso do baldaquino com um globo e uma cruz. O desenho é exuberante, cheio da energia e movimento próprios ao Barroco, a solução ideal para o imenso espaço aberto no interior pelo domo central. Para obter bronze suficiente o papa ordenou derreter bronzes antigos do Panteão, fazendo com isso o povo de Roma dizer: «O que os bárbaros não conseguiram fazer, fizeram os Barberini...»
Dentro do Vaticano, se incluirmos os vários museus, anda-se quilómetros. Nem tudo é digno de atenção, mas só a visita das Estâncias de Rafael e da celebérrima Capela Sixtina já merece os 14 euros que se pagam de entrada.
As capelas pintadas por Rafael são magníficas. Gostei em particular da que representa o famoso «Incêndio do Borgo». Quanto à Capela Sixtina (ou Sistina) merece toda a sua reputação. Poderíamos ficar horas a admirar tanto o tecto como a parede do altar, que representa o Juízo Final. Estou, contudo, demasiado cansado para escrever sobre o que senti naquele local esmagador.
(Àparte: a famosa guarda suiça do Vaticano existe desde o século XVI. O pitoresco traje que ainda hoje usam foi desenhado por Miguel Ângelo).
A meio da noite
Acabo de ter um dos mais belos sonhos da minha vida. Não me lembro das circunstâncias, mas de repente desatava a cantar e não conseguia mais parar. As palavras jorravam da minha boca sob a forma de canto, como a água da fonte. Sem parar. O meu canto transportava-me cada vez mais alto. Tudo o que eu dizia rimava e era lindo. E a Raquel amava-me cada vez mais por causa disso. Em casa, o pó ia-se acumulando mas nós não nos ralávamos com isso.
A certa altura, o sonho tornou-se tão intenso que acordei sobressaltado.
Na minha cabeça, martelava uma história. Ou melhor, um esboço de história. Os apontamentos que tirei (na casa de banho, para não acordar a Raquel), dizem assim:
«Era uma vez um país onde os espelhos nunca chegaram a ser inventados. Por isso, as mulheres quando se queriam pôr bonitas tinham que se desenhar em cadernos. Assim, quando morriam, os filhos podiam vê-las não como se lembravam delas, mas como elas eram realmente.
Os homens não desenhavam. Faziam a barba uns aos outros e, por isso, nunca se matavam».
7º Dia, sexta-feira
Estou tão obcecado pelo Caravaggio que hoje decidi dedicar-lhe o dia. Logo de manhã fui à galeria Doria Pamphilj, um belíssimo palácio mesmo no centro da cidade com uma colecção fabulosa de obras de arte. Pieter Brueghel, Durer, Ticiano, El Greco, Tintoreto… estão lá muitos quadros admiráveis, mas o que eu queria ver sobretudo eram os dois Caravaggios: «Descanso na fuga para o Egipto» e «Madalena penitente». As duas obras estão lado a lado e salta à vista que, em ambas, a mulher é a mesma. Até a posição do rosto e expressão são idênticas. Consta que o modelo terá sido uma prostituta. De resto, naquele tempo, o pintor usava quase sempre gente do submundo para os seus quadros.
O «Descanso na fuga para o Egipto» é uma obra de juventude. É mais luminoso e alegre que as obras posteriores, mas já tem pormenores geniais. O modo como José descansa os pés, um em cima do outro, por exemplo, e a nudez do anjo que está de costas para nós, tocando violino de olhos fechados. Também Maria e o menino parecem ter os olhos fechados, sem dúvida para apreciar melhor a música, como eu costumo fazer.
Para além de José, só o burro tem os olhos abertos. Está lá atrás, meio escondido, como um mirone, talvez perguntando a si próprio porque será que a sua voz nunca chegará ao céu.
A segunda etapa do meu percurso Caravaggio levou-nos à Igreja S. Luiz dos Franceses que ontem, por ser quinta-feira, estava fechada. Aí esperavam-me três novas pinturas do mestre do «claro-escuro» (como alguns lhe chamam), que evocam três fases da vida de São Mateus. Ornam as paredes de uma capela e só se podem ver ao longe, em más condições. Gostei especialmente do quadro intitulado «A Vocação de S. Mateus», onde Jesus Cristo irrompe na sala onde se encontra o cobrador de impostos. A luz que ilumina os diversos rostos, e muito em particular a um jovem que tem um chapéu com uma pluma na cabeça, empresta à cena um encanto indescritível. Neste, como noutros quadros, Caravaggio comporta-se como um fotógrafo de cena que fosse simultaneamente um encenador genial, pelo modo como dispõe as personagens no quadro e as expressões que lhes coloca no rosto, para já não falar do modo como os ilumina.
A terceira vista foi ao Palácio Barberini onde está o quadro que mais queria ver: «Judite e Holofernes».
Diz a história que a bela Judite seduziu um general inimigo, cujas tropas cercavam a cidade onde vivia, organizando um banquete em sua honra. Quando ele adormeceu, já bêbado, ela degolou-o com a ajuda de uma criada e expôs a sua cabeça nas muralhas da cidade, para que o exército inimigo debandasse.
Este episódio sangrento inspirou muitos artistas, e dado o gosto de Caravaggio pela violência, o tema só podia inspirá-lo. A obra tem uma força estonteante. Dificilmente esquecerei a espada atravessada no pescoço daquele homem barbudo, cujo grito mudo consigo ouvir só de o imaginar. Qualquer dos três rostos em cena é brutal: o da vítima, entre o espanto e a agonia, o da criada carregado de ódio e, sobretudo, o de Judite com um olhar onde se mesclam a determinação e o nojo, mas também (será impressão minha?) um quase imperceptível prazer sádico. Direi mesmo que, pelo menos aos meus olhos, este é de todos as obras de Caravaggio que conheço, a mais poderosamente sexualizada.
A seu lado, o «Narciso», outra das suas obras mais emblemática, quase passa despercebida.
O Narciso de Caravaggio não parece apaixonado por si próprio. Vejo nele apenas um adolescente meditativo. Imagino-o a perguntar-se: «Quem é este que vejo? eu? Mas quem sou eu?».
Por mim, respondo: a nossa imagem está sempre a mudar. Como poderíamos nós reconhecer-nos, num espelho ou numa fotografia? O rosto que vi de manh enquanto fazia a barba, não eraexactamente o mesmo que na véspera.
Se olho para fotografias antigas, sou obrigadoa a concluir: «Todas estas imagens mentem, eu não estou verdadeiramente em nenhuma. Mais: nunca estive. Se fui aquele gajo, nem dei por isso».
Na verdade, não tenho uma imagem a que chame minha. Por vezes, penso que a minha imagem está espalhada aos quatro ventos e que cada pessoa que cruzo na rua conhece-a melhor do que eu.
Sábado, dia de regresso
Antes de regressar a Lisboa, ainda tivemos tempo de ir a um mercado e visitar as Termas de Caracalla, que se revelaram uma grande decepção.
As ruínas deixam perceber a sua antiga grandiosidade, é verdade, mas só restam parcos vestígios dos mosaicos que cobriam o chão e algumas paredes. Tudo o resto desapareceu.
Vale no entanto a pena lembrar que as termas (construídas entre 212 e 216 a.C.) eram um vastíssimo conjunto de piscinas e ginásios, abertos durante 24 horas e empregando centenas de escravos. Podia receber até 1600 pessoas em simultâneo e, por tuta e meia, qualquer romano tinha acesso a banhos turcos, piscinas de água quente e fria, massagens e tratamentos de beleza.
Nos ginásios praticavam-se vários desportos, como a luta e a esgrima. Os intelectuais preferiam frequentar o auditório, a biblioteca e apreciar as muitas obras de arte que ali se encontravam.
As Termas de Caracalla encerraram em 537 d.C., quando se romperam os aquedutos, que tinham 91 quilómetros de extensão com uma capacidade para 80 mil litros de água.
No avião de regresso, escrevi no meu caderninho: «Escrever, viajar, fotografar: tudo isto remete para a mesma pulsão. Uma pulsão de vida (PARAR É MORRER)». E lembrei-me de uma frase do filósofo Michel Onfray que reza assim: «Dans le voyage, on découvre seulement ce dont on est porteur».